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sábado, 19 de setembro de 2020

Cuidado: O excesso de Inclusão pode matá-la. (Cap.1)

Este é a primeira de outras reflexões que irei aqui deixar para que todos possa também pensar e formar as suas ideias e posições sobre o Decreto Lei 54/2008 de 6 de julho, (alterado pela Lei nº 116/2019 de 13 de setembro). São diversos textos que dividirei por capítulos, com uma análise pessoal do estado da Educação Inclusiva em Portugal, à luz do novo diploma assim denominado.

CAPÍTULO 1

DL 54/2018: Uma lei enganadora e perigosa

A estranheza começa por termos um documento legal denominado regime jurídico da “Educação Inclusiva”, que não apresenta a generalização da Inclusão a toda a escola, mas sim uma mudança circunscrita à forma como atender alunos com Necessidades Específicas. A Inclusão não é apenas para ser pensada quando há alunos com insucesso, é também para a bordar processos de marginalização e exclusão de uma forma global.

Em vez de se terem criado mecanismos globais para promover a igualdade e a equidade, alargando a inclusão a todos os alunos em todos os Departamentos Curriculares e dimensões da escola, criou-se a INCLUSÃO, apenas dentro de uma lei que organiza apoios específicos para alguns  alunos com dificuldades na aprendizagem, esquecendo todos os restantes alunos que sofrem de exclusão e esquecendo, principalmente, a criação de mecanismos que tornem toda a escola mais inclusiva, diferenciadora e competente para ensinar na diversidade. Uma inclusão que se deve propor através de um ensino globalmente diferenciado, que saiba educar na diferença e acolha a diversidade como uma riqueza, num processo de transformação qualitativa de toda a escola. Pode-se tentar ter uma lei que queira promover uma maior inclusão dos alunos com Necessidades Educativas Especiais, mas não se pode fazer crer que esta é a LEI da Educação Inclusiva.

Dizer que estes são os Alunos da Educação Inclusiva, só por si, já é prova de que esta não é uma lei de inclusão para todos, nem assume de forma clara que cuida de forma específica e com equidade dos que precisam de intervenção especializada, nem regula processos globais de mudanças na escola. 

Basta ver como o DL/54 se (não) articula com a avaliação externa, nem com a restante legislação, nomeadamente no Despacho Normativo nº10-B/2018 de 6 de julho, saído no mesmo dia, que no ponto 2 do artigo 11º. diz que as medidas do DL/54 são aplicadas quando existam Necessidades Específicas de acesso às aprendizagens curriculares, remetendo o DL 54/2008 para este contexto específico.  “Nos casos em que a equipa de docentes da turma identificar necessidades específicas de acesso às aprendizagens curriculares, a abordagem multinível permite o recurso a medidas universais, seletivas e adicionais”. Ou seja, há a escola para todos os alunos conforme ela sempre existiu, com um conjunto de medidas para o sucesso e depois, noutro lado, há medidas para casos específicos, chamando-lhe Lei da Inclusão.

Não sendo uma lei que promova uma Escola Inclusiva em todas as suas dimensões, é um documento enganador, pois apregoa aquilo que não é. Mas pior, ao haver uma suposta Lei da Inclusão, as consciências ficam apaziguadas e o assunto da Inclusão fica entregue. Isto leva a que nada mude em todo o restante sistema educativo, por isso, além de enganador é um documento perigoso, porque muda alguns detalhes para que a escola não tenha que mudar. Propaga-se então a ideia de que, se há uma lei da Educação Inclusiva, então temos uma escola inclusiva. Só que estamos muito longe disso. E mais longe cada dia que passa.

Semântica criativa dilui as necessidades específicas.

A linguagem, tornou-se ainda mais estigmatizante e veio legitimar muitas práticas incorretas, ou manter as anteriores, mas de forma criativa. Em nome da Inclusão, estamos a promover a exclusão pela diluição do que deveria ser específico.

Ensaiaram-se diversas formas de semântica para fazer crer que estamos em estado de inclusão, deixando de haver crianças e jovens com deficiência, com transtornos no desenvolvimento, com Necessidades Educativas Especiais, o que coloca em risco a afetação de recursos específicos e de saberes especializados, que alavanquem o indivíduo e uma correta organização do sistema. Nomenclaturas essas fixadas internacionalmente na área da saúde e educação. Até o termo “Necessidades Educativas Especiais” desaparece, sem ter substituto, numa enorme falta de rigor, contribuindo para uma linguagem mais estigmatizante. O termo NEE, que surgiu como resposta às designações médicas até então e que centra a resposta na resposta da escola, acaba por ser abandonado em Portugal, tornando invisíveis quaisquer necessidades ou problemáticas específicas dos alunos. Mas estranhamente, a legislação acaba depois por falar em Necessidades de Saúde Especiais, Necessidades Específicas ou ainda Necessidades Educativas. Não há uma coerência científica e paradigmática no articulado. Basta ler como as nomenclaturas agora se constroem nas escolas: são os alunos do 54, alunos das Seletivas, alunos com Adaptações Curriculares, alunos com graves barreiras ao desenvolvimento e aprendizagem…e, finalmente parece que o termo usado no diálogo com a tutela é: alunos com Necessidades Específicas, podendo também ser alunos com RTP.  Isto coloca num grande saco todos os alunos, sem a correção científica e até pedagógica de caracterização de condições intrínsecas e esconde alunos que necessitam de uma especial atenção.

Não é conhecida qualquer avaliação da lei anterior, ou a sua ligação a estudos fundamentados, nem tão pouco no diálogo com os intervenientes no terreno ou na análise e divulgação das boas práticas, que por esse país fora se estabeleceram nas escolas. Parece mais um documento que vai a reboque de ideias e agendas implícitas. Apregoa a ideia, apropriada por muitas escolas e professores, que” isto agora é para todos”, mas não se percebe como. Legitima intervenção de muitos agentes educativos, que de repente se acham capacitados para o assunto. Porque o tema é inclusão, todos se acham incluídos, mas compreender o que está em causa e agir corretamente na sua implementação não é automático só porque ficou essa ideia no ar da retórica. Há um desfasamento muito grande com a realidade e está a ser aplicada de formas diversas, interpretada ao sabor de cada Agrupamento, criando dificuldades no que seria essencial acautelar. Não se podem impor convicções, sem ter em conta a realidade das escolas e o que realmente emana como necessidade dos atores.

Incluir sem investir

Da observação da prática não resulta uma melhoria da inclusão da escola e dos alunos com NEE, nem qualquer investimento nesse sentido, porque o que temos nesta Lei é a criação de uma situação potenciadora de um retrocesso, de voltarmos à institucionalização por falta de respostas especializadas do sistema público aos casos mais graves. Voltar a criar desigualdades, levará os pais a pagar a gabinetes técnicos e optar por instituições, quando um maior investimento em equipas, assistentes e professores de Educação Especial, podem fazer o mesmo, ou até melhor. Esta lei ensaia uma postura neoliberal que apregoa a Inclusão, ao mesmo tempo que desinveste nas respostas públicas, abrindo a porta para o financiamento do privado, remetendo depois para o poder económico de cada família a busca de opções que a escola pública mitiga. Reverter conquistas de décadas na desinstitucionalização de milhares de alunos, é fácil. Desvalorizar, secundarizar e apagar os professores de Educação Especial que durante décadas construíram a inclusão neste país, é fácil. Mas isto vai ter um preço. O investimento na Educação Especial Inclusiva na escola publica, é o investimento na equidade e nem sempre se pode esperar retorno económico, produtividade ou empregabilidade, quando se trata de incluir as diferenças e operacionalizar valores. Nada justifica o retrocesso, porque a fatura virá depois, sob a forma de mais exclusão.

Na prática nada de diferente

Tudo o que hoje é feito em termos de apoio aos alunos, poderia existir com a lei anterior. O que mudou foi a burocracia exagerada, os processos mais complexos, as dúvidas e confusões de escola para escola e um marketing enganador. No fundo o resultado está à vista, com a redução de investimento, o número de alunos elegíveis para determinadas respostas ou provas externas, menos recursos, menos turmas reduzidas, menos apoios diretos específicos, menos respostas concretas para as necessidades mais graves, com contradições nas nomenclaturas, na aplicação das medidas, na organização dos processos e tudo, em nome da Inclusão.

A nova Lei não tem ingredientes que a diferenciem suficientemente da anterior para se dizer que apresenta melhores soluções. No campo da retórica repete tudo o que se faz há décadas, nos modelos e conceitos apresenta fragilidade científica e no campo da implementação, não está a proporcionar melhorias. Ao longo desta reflexão, em vários capítulos, irei abordar diversas situações, que mostram a forma enviesada como uma retórica inclusiva cheia de convicções e teorias, pode não cuidar das necessidades individuais, usando a inclusão de uma forma perversa e abrindo a porta ao regresso da institucionalização. Hoje insiste-se em usar as mesmas respostas para todos os alunos, numa interpretação completamente enviesada da Inclusão.

Não há indicadores que esta legislação tenha melhorado a inclusão nas escolas. Pelo contrário, todos os relatos que nos chegam falam em desnorte, falta de referências, falta de rigor, de conhecimento e uma disparidade de práticas, como nunca se verificou nesta área anteriormente. Surge em alguns locais uma onda “inclusivista” perversa de quem não sabe realmente o que deve ser feito. Acreditamos que até os serviços do ME deixaram de conhecer a realidade dos alunos mais graves no sistema. Seria importante avaliar os reais ganhos de inclusão nas suas dimensões e não produzir mais números, mais percentagens, mais controlo burocrático.

A criatividade semântica, as contradições científicas, a falta de formação dos agentes e as fragilidades de uma fraca clarificação; resultam em práticas díspares, ações erradas e desinformadas, desinvestimento e recuo do apoio especializado. Enquanto isso, nada muda na generalidade do ensino em Portugal. Sinais preocupantes, que podem criar um retrocesso nunca antes verificado e de difícil correção, à medida que o tempo passa.

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 Este é a primeira de outras reflexões que irei aqui deixar para que todos possa também pensar e formar as suas ideias e posições sobre o Decreto Lei 54/2008 de 6 de julho, (alterado pela Lei nº 116/2019 de 13 de setembro). São diversos textos que dividirei por capítulos e que pretendem fazer uma análise muito pessoal do estado da Educação Inclusiva em Portugal, à luz do novo diploma legal assim denominado, dois anos após a sua publicação.

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