Este é a segunda reflexão que irei aqui deixar para que todos possa também pensar e formar as suas ideias e posições sobre o Decreto Lei 54/2008 de 6 de julho, (alterado pela Lei nº 116/2019 de 13 de setembro). São diversos textos que dividirei por capítulos, com uma análise pessoal do estado da Educação Inclusiva em Portugal, à luz do novo diploma assim denominado.
CAPÍTULO 2
As mudanças: novidades, ou talvez não.
A primeira grande alteração
prática e efetiva, que se desejava, foi o fim da CIF como modelo de
classificação dos alunos, cuja obrigatoriedade estava inscrita na lei anterior,
o que motivou críticas desde o primeiro dia da sua implementação, dado que
entrava em contradição com a construção de uma melhor inclusão e mantinha o
primado do modelo clínico sobre um modelo mais pedagógico, tendo como resultado
selecionar quem acedia a que tipo de medidas e recursos. No DL/54 ensaia-se uma
forma de identificação dos alunos elegíveis para cada medida, baseada na
eliminação de barreiras e na fundamentação pedagógica para o apoio necessário.
Aparecem também as Medidas
Universais como a grande mudança, pois permitem que medias de acesso ao
currículo anteriormente integradas na Educação Especial (Acomodações
Curriculares) inscritas num PEI, possam agora ser aplicadas por todos os
docentes sempre que necessário.
Com estas mudanças criaram-se dois
problemas: i) a saída da esfera especializada das medidas de acesso ao
currículo (acomodações curriculares) e ii) a restrição de atribuição de apoios
especializados, adaptações à avaliação externa e redução de turma, apenas aos
alunos com RTP. Logo, não universais.
Primeiramente este salto para um
modelo social, secundarizou a especificidade do indivíduo e as suas barreiras
intrínsecas, essenciais para compreender a pessoa no seu contexto. Abandona-se
de tal maneira um modelo individual, que se perde uma abordagem mais equilibrada,
numa linha bio psico social. A elegibilidade como que desapareceu, ou antes,
colocou num grande saco tudo e todos, agora sob a forma de barreiras e
potencialidades, que dizem tudo e coisa nenhuma. Nas escolas é visível esse
desnorte na elegibilidade, na avaliação pedagógica com referência aos
currículos, na falta de rigor e clareza numa matéria tão sensível, tornando
geral o que é específico e o que deveria ser específico banaliza-se.
Paralelamente, a definição de NEE de
caráter permanente (outra criatividade portuguesa), “recua” para as medidas
adicionais, nomeadamente para o nº1 do Artigo 10º, “As
medidas adicionais visam colmatar dificuldades acentuadas e persistentes ao
nível da comunicação, interação, cognição ou
aprendizagem que exigem recursos especializados de apoio à aprendizagem e à inclusão”. Desta vez são “acentuadas” e “persistentes”, logo, carecem
de uma fundamentação clínica. Ao mesmo tempo, a figura do RTP, só se aplica
quando existam, pelo menos, Medidas Seletivas, excluindo as Universais, logo as
Acomodações, ao contrário do que acontecia antes, onde o PEI salvaguardava a
necessidade de medidas de acesso ao currículo para os alunos com NEE.
Esta abertura é
centralmente positiva, mas tornou-se num presente envenenado. Retira as
acomodações curriculares do âmbito da especialidade e do RTP, onde, em muitos
casos, são necessárias por questões de incapacidade intrínseca e perturbações.
Uma coisa é abrir as Medidas Universais (que sempre existiram) a quem delas
possa necessitar (embora nunca tenha sido vedada a sua utilização anteriormente
por todo o ensino), outra coisa é um aluno que necessita destas Medidas de
forma permanente, devido a condições individuais, deixar de ter acesso a redução
de turma, apoio especializado, apoio personalizado, ou a condições nos exames,
sabendo-se que as medidas de acesso ao currículo e adaptação da avaliação, estão
contidas nas Acomodações Curriculares. Como resultado, acautelaram-se as
situações que exigem investimento financeiro, mas na realidade corre-se o risco
de estar a desproteger estes alunos e dilui-los em respostas gerais,
contrariando o direito a uma diferenciação com equidade.
Para além do atrás referido temos
ainda conceitos, medidas e modelos supostamente novos, a complicar aquilo que
poderia ser tão simples, mas que passou a ser um conjunto importado de
nomenclaturas criativas. A própria Diferenciação Pedagógica, tão necessária no
nosso sistema de ensino, aparece como uma medida prescritiva para alguns alunos
em dificuldade, como se fosse possível promove-la, sem diferenciar o ensino, dado
que é uma metodologia de ensino para toda a turma.
Também o Desenho Universal é uma
forma de planificar para o ensino global da turma. Como se pode pedir que os
professores planifiquem de acordo com o Desenho Universal, quando as
planificações dos departamentos curriculares e as Aprendizagens Essenciais não
são organizadas de acordo com esses princípios?
O Modelo Multinível, uma forma de
organizar práticas e ações nos sistemas, aparece como mero organizador de
medidas prescritivas. Não é um modelo pedagógico, mas aparece misturado como se
fosse. A sua introdução nesta lei é completamente desnecessária, pois já desde
os anos 90 que se divulgam praticam princípios como “meio menos restritivo
possível” ou “aplicação progressiva de medidas mais restritivas”.
Contradições e falta de rigor
científico que fragilizam o diploma e comprometem a sua real implementação. Conceitos
como Desenho Universal, Diferenciação Pedagógica e Educação Multinível,
deveriam fazer parte de uma estratégia mais global para todos os alunos, por
exemplo, no DL/55, mas estão longe de serem apropriados pelas escolas. As suas
corretas definições remetem para uma implementação que não se circunscreve a um
contexto e aplicação de medidas especificas numa parte do sistema.
Como consequência, tudo
isto acabou por se instalar como um problema, que cada escola resolve da melhor
forma, mas que resulta, na prática, em leituras criativas, procedimentos
díspares, menos apoio específico, menos investimento, menos reduções de turma e
diluição em medidas de apoio gerais, que prejudicam muitos alunos, antes
acautelados.
As mudanças: querer mais inclusão sem Educação Especial
Outra mudança é procurar tornar a
Educação Especial apenas numa disciplina de apoio colaborativo, esvaziando-a como
estrutura responsável pela inclusão destes alunos e não garantido a sua efetiva
e fundamental atuação direta especializada dos que dela necessitam e
dependem. Isto abre também a porta à redução destes profissionais. Uma lei
desta natureza tem que ter em conta as necessidades e a realidade das escolas,
não pode simplesmente perder-se na magia da retórica e decretar a Inclusão, ao
mesmo tempo que secundariza os principais atores da mesma, ao longo de décadas.
Deveríamos ter partido de uma
avaliação da anterior lei e melhorar, mas sem complicar ou introduzir modelos
desnecessários. Concordamos que se trata de um caminho a percorrer por todos,
em simultâneo, através de passos seguros e respeitando a velocidade e
necessidade das escolas. Só que não foi feita essa avaliação, nem foram tidos em
conta os atores principais da mudança, criando um divórcio entre a realidade
das escolas, as suas necessidades, o ponto onde se encontram e aquilo que a lei
pretende.
Por outro lado, também não se
pode dizer que existe uma lei de Educação Inclusiva e querer alterar o corpo de
professores de Educação Especial para professores de ação genérica, criando um
perfil funcional difuso de apoio indireto. Coloca-se em causa o corpo de
conhecimento específico desta área curricular legalmente consignada. Todos os
professores têm de ser de Inclusão e ter esse objetivo assumido no sistema de
forma transversal. A Inclusão é um valor e é um objetivo do sistema educativo,
da escola e das disciplinas, não é, por si só, uma disciplina. Aliás, nesta lei
nem se define o que é Educação Inclusiva, estranho, ou talvez não.
As
mudanças: uma EMAEI redundante no local errado
Outra das alterações inquietantes
é a criação de uma equipa de coordenadores, EMAEI, que seria responsável pela Inclusão,
mas, mais uma vez, acaba por ser só para os alunos abrangidos pela legislação,
como decorre da leitura das suas competências e a dimensão onde foi criada. Na
prática fica reduzida à implementação de medidas prescritivas e a um papel
administrativo e burocrático, completamente redundante. Aliás, a burocracia é a
grande marca desta lei.
Em nenhuma outra legislação, a não ser no DL/54, aparecem referidas as EMAEI ou os CAA, nomeadamente no Decreto Lei n.º 54/2018 de 6 de julho, ou Despacho Normativo n.º 10-B/2018 de 6 de julho. Não está regulamentada a sua ação, nem se percebe onde fica na hierarquia de um Agrupamento. Portanto, pretender fazer uma leitura abrangente do contexto de atuação destas estruturas, parece-nos ser um ato de muita generosidade.
Basta ler as competências da
EMAEI, para perceber que se trata de uma equipa que zela pelo cumprimento do DL/54,
nos procedimentos de identificação e acompanhamento das medidas, na
participação dos pais, na elaboração dos RTP, PEI e PT, bem como acompanhar os
Centros de Apoio à Aprendizagem. Para além destas competências, duas lacónicas
alíneas falam em sensibilizar para a inclusão e prestar aconselhamento sobre
práticas inclusivas aos docentes, inferindo tratar-se dos docentes dos
alunos abrangidos pelo DL/54. Com um peso enorme relacionado com a aplicação do
DL/54, não vemos nestas duas alíneas o caráter abrangente, que alguns
interpretam ser a função da EMAEI e a prática nos Agrupamentos está à vista.
Por não ter conteúdo funcional fora
das gestão de medidas prescritivas, a EMAEI tem de ir disputar competências com
outros setores da escola, nomeadamente tentando fazer o que é da competência do
Departamento de Educação Especial, dos Conselhos de Turma, dos Departamentos e Disciplinas
e, principalmente do Conselho Pedagógico e do Diretor. Estando já organizadas opções
mais inclusivas para a gestão dos apoios e das medidas, pelos órgãos que
efetivamente trabalham com os alunos e os conhecem, não faz sentido criar uma
estrutura à parte.
Estranhamente temos aqui um
movimento inverso ao que inicialmente deveria ser o lógico, ou seja, em vez do
trabalho pela Inclusão dos alunos com NEE, ser aprofundado e disseminado pelo
resto da escola, “contaminando” o ensino para todos os Departamentos; são os
restantes Departamentos que se inserem numa Lei setorial, mas não cuidam da Inclusão
para todos os alunos nas suas respetivas áreas. Temos então um elevado número
de pessoas a tratar do que poderia ser feito de forma bem mais simples e
especializada, descurando as suas áreas de referência. como aliás acontece nos documentos pedagógicos correntes da escola como os Planos de Acompanhamento ou os Planos de Turma, por exemplo.
Em muitos Agrupamentos temos um
grupo de pessoas que se reúne semanalmente por diversas horas, afogadas em
burocracia e prazos, totalmente ineficaz, sem conhecer alunos, com uma
sobrecarga de trabalho, para fazer, o que afinal legitimamente já era anteriormente
feito pelo Departamento de Educação Especial, SPO, pais, técnicos e Conselhos de Turma/Docentes.
Instalou-se nas escolas uma disparidade de formas de organização e de atuação
nos diferentes Agrupamentos, com leituras diferentes do que já nasceu ambíguo,
pondo em causa a forma atempada, célere, prática e sigilosa, de gerir
estes processos, pelos intervenientes diretos, como até aqui.
Seria muito mais eficaz criar uma equipa do género com influência transversal e abrangente, a um nível superior, no seio do Conselho Pedagógico, onde já todos esses coordenadores têm assento. Um órgão com responsabilidade na promoção e acompanhamento da Inclusão em todo o ensino e em todas as áreas. Criada no DL/55, por exemplo, onde cada coordenador acompanharia e responderia pelo seu próprio departamento em matéria de Inclusão. Por muito que se queira fazer crer, ou interpretar, a EMAEI não tem recursos próprios, jurisdição nos processos pedagógicos e medidas para o sucesso para todos os alunos, nem atua em toda a escola, o que a diminui e a remete para um setor específico. pretende-se que esta equipa permanente acaba por definir um conjunto de indicadores de avaliação da inclusão, mas não a toda a escola, apenas no âmbito da aplicação do DL/54. Atente-se ao estipulado no ponto 2 do artigo 11º do Despacho Normativo n.º 10-B/2018 de 6 de julho, que remete o DL/54 para o seu canto.
A forma como a EMAEI se organiza,
com elementos permanentes e variáveis, cria muitas dúvidas pelo país e formas
de atuação díspares, nem torna a deteção das necessidades mais atempada, nem
cuida do rigor das decisões, nem muda os atores (elementos variáveis), dado que são os mesmos que já
o faziam, isto para além das diferentes interpretações que está a ter. Faria
sentido separar as duas vertentes. As decisões sobre medidas e sua
aplicação já são tratadas por quem trabalha com os alunos e assim deveriam
continuar, à semelhança de tantas outras situações como as tutorias, planos de
apoio, apoio ao estudo, salas específicas, projetos do português e da
matemática, etc… porquê neste particular excluir?
Também nos preocupa a forma como é
tratada a Educação Especial, na composição permanente. Todos são coordenadores
exceto o representante da Educação Especial. Ou seja, quem redigiu esta lei
omite que em todos os Agrupamentos de Portugal já existem coordenadores de
Educação Especial. Em muitos deles a EE constitui-se até como Departamento
autónomo, tem assento no Pedagógico, sendo avaliado na sua
especificidade e transversalidade e prestando contas de forma autónoma ao Conselho Pedagógico, ao
Diretor, à IGE e à tutela. O que se passa neste momento é que muitos
Agrupamentos foram mais longe e acabaram com os Departamentos de Educação
Especial e passaram a designar Departamento de Educação Inclusiva, resultando
que, de repente, apenas alguns professores se tornaram Inclusivos. Outros simplesmente remeteram a EE para um papel executivo. Foram conquistas de muitos anos, onde só a Inclusão ficou a
ganhar com uma Educação Especial mais forte, reconhecida pelas estruturas e
pelos pares. Com a nova legislação há um esvaziamento da Educação Especial sem
sentido e a que preço. Sabemos que na proposta de lei para discussão pública,
estava ausente qualquer referência à Educação Especial e seus profissionais. Parece
que na génese deste documento está a ideia de minimizar a Educação Especial
como grupo ou departamento autónomo organizado e especializado, com estatuto legal
consignado, com funções e recursos próprios que gere e responsabilidade na
educação direta e indireta dos alunos com NEE e na promoção da Educação
Inclusiva.
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