Este é a primeira de outras reflexões que irei aqui deixar para que todos possa também pensar e formar as suas ideias e posições sobre o Decreto Lei 54/2008 de 6 de julho, (alterado pela Lei nº 116/2019 de 13 de setembro). São diversos textos que dividirei por capítulos, com uma análise pessoal do estado da Educação Inclusiva em Portugal, à luz do novo diploma assim denominado.
CAPÍTULO 1
DL 54/2018: Uma lei enganadora e perigosa
A estranheza começa por termos um documento legal denominado regime jurídico da “Educação Inclusiva”, que não apresenta a generalização da Inclusão a toda a escola, mas sim uma mudança circunscrita à forma como atender alunos com Necessidades Específicas. A Inclusão não é apenas para ser pensada quando há alunos com insucesso, é também para a bordar processos de marginalização e exclusão de uma forma global.
Em vez de se terem criado mecanismos globais para promover a igualdade e a equidade, alargando a inclusão a todos os alunos em todos os Departamentos Curriculares e dimensões da escola, criou-se a INCLUSÃO, apenas dentro de uma lei que organiza apoios específicos para alguns alunos com dificuldades na aprendizagem, esquecendo todos os restantes alunos que sofrem de exclusão e esquecendo, principalmente, a criação de mecanismos que tornem toda a escola mais inclusiva, diferenciadora e competente para ensinar na diversidade. Uma inclusão que se deve propor através de um ensino globalmente diferenciado, que saiba educar na diferença e acolha a diversidade como uma riqueza, num processo de transformação qualitativa de toda a escola. Pode-se tentar ter uma lei que queira promover uma maior inclusão dos alunos com Necessidades Educativas Especiais, mas não se pode fazer crer que esta é a LEI da Educação Inclusiva.
Dizer que estes são os Alunos da
Educação Inclusiva, só por si, já é prova de que esta não é uma lei de inclusão
para todos, nem assume de forma clara que cuida de forma específica e com
equidade dos que precisam de intervenção especializada, nem regula processos
globais de mudanças na escola.
Basta ver como o DL/54 se (não)
articula com a avaliação externa, nem com a restante legislação, nomeadamente
no Despacho Normativo nº10-B/2018 de 6 de julho, saído no mesmo dia, que no
ponto 2 do artigo 11º. diz que as medidas do DL/54 são aplicadas quando existam
Necessidades Específicas de acesso às aprendizagens curriculares,
remetendo o DL 54/2008 para este contexto específico. “Nos casos em que a equipa de docentes da
turma identificar necessidades específicas de acesso às aprendizagens
curriculares, a abordagem multinível permite o recurso a medidas universais,
seletivas e adicionais”. Ou seja, há a escola para todos os alunos conforme
ela sempre existiu, com um conjunto de medidas para o sucesso e depois, noutro
lado, há medidas para casos específicos, chamando-lhe Lei da Inclusão.
Não sendo uma lei que promova uma
Escola Inclusiva em todas as suas dimensões, é um documento enganador, pois
apregoa aquilo que não é. Mas pior, ao haver uma suposta Lei da Inclusão, as
consciências ficam apaziguadas e o assunto da Inclusão fica entregue. Isto leva
a que nada mude em todo o restante sistema educativo, por isso, além de
enganador é um documento perigoso, porque muda alguns detalhes para que a
escola não tenha que mudar. Propaga-se então a ideia de que, se há uma lei da
Educação Inclusiva, então temos uma escola inclusiva. Só que estamos muito
longe disso. E mais longe cada dia que passa.
Semântica criativa dilui as necessidades específicas.
A linguagem, tornou-se ainda mais
estigmatizante e veio legitimar muitas práticas incorretas, ou manter as
anteriores, mas de forma criativa. Em nome da Inclusão, estamos a promover a exclusão
pela diluição do que deveria ser específico.
Ensaiaram-se diversas formas de
semântica para fazer crer que estamos em estado de inclusão, deixando de haver crianças
e jovens com deficiência, com transtornos no desenvolvimento, com Necessidades
Educativas Especiais, o que coloca em risco a afetação de recursos específicos
e de saberes especializados, que alavanquem o indivíduo e uma correta
organização do sistema. Nomenclaturas essas fixadas internacionalmente na área
da saúde e educação. Até o termo “Necessidades Educativas Especiais”
desaparece, sem ter substituto, numa enorme falta de rigor, contribuindo para
uma linguagem mais estigmatizante. O termo NEE, que surgiu como resposta às
designações médicas até então e que centra a resposta na resposta da escola,
acaba por ser abandonado em Portugal, tornando invisíveis quaisquer necessidades
ou problemáticas específicas dos alunos. Mas estranhamente, a legislação acaba
depois por falar em Necessidades de Saúde Especiais, Necessidades Específicas
ou ainda Necessidades Educativas. Não há uma coerência científica e
paradigmática no articulado. Basta ler como as nomenclaturas agora se constroem
nas escolas: são os alunos do 54, alunos das Seletivas, alunos com Adaptações Curriculares,
alunos com graves barreiras ao desenvolvimento e aprendizagem…e, finalmente
parece que o termo usado no diálogo com a tutela é: alunos com Necessidades Específicas,
podendo também ser alunos com RTP. Isto coloca
num grande saco todos os alunos, sem a correção científica e até pedagógica de
caracterização de condições intrínsecas e esconde alunos que necessitam de uma
especial atenção.
Não é conhecida qualquer
avaliação da lei anterior, ou a sua ligação a estudos fundamentados, nem tão
pouco no diálogo com os intervenientes no terreno ou na análise e divulgação
das boas práticas, que por esse país fora se estabeleceram nas escolas. Parece
mais um documento que vai a reboque de ideias e agendas implícitas. Apregoa a
ideia, apropriada por muitas escolas e professores, que” isto agora é para
todos”, mas não se percebe como. Legitima intervenção de muitos agentes
educativos, que de repente se acham capacitados para o assunto. Porque o tema é
inclusão, todos se acham incluídos, mas compreender o que está em causa e agir
corretamente na sua implementação não é automático só porque ficou essa ideia
no ar da retórica. Há um desfasamento muito grande com a realidade e está a ser
aplicada de formas diversas, interpretada ao sabor de cada Agrupamento, criando
dificuldades no que seria essencial acautelar. Não se podem impor convicções,
sem ter em conta a realidade das escolas e o que realmente emana como
necessidade dos atores.
Incluir sem investir
Da observação da prática não
resulta uma melhoria da inclusão da escola e dos alunos com NEE, nem qualquer
investimento nesse sentido, porque o que temos nesta Lei é a criação de uma
situação potenciadora de um retrocesso, de voltarmos à institucionalização por
falta de respostas especializadas do sistema público aos casos mais graves. Voltar
a criar desigualdades, levará os pais a pagar a gabinetes técnicos e optar por
instituições, quando um maior investimento em equipas, assistentes e professores de
Educação Especial, podem fazer o mesmo, ou até melhor. Esta lei ensaia uma postura
neoliberal que apregoa a Inclusão, ao mesmo tempo que desinveste nas respostas
públicas, abrindo a porta para o financiamento do privado, remetendo depois
para o poder económico de cada família a busca de opções que a escola pública
mitiga. Reverter conquistas de décadas na desinstitucionalização de milhares de
alunos, é fácil. Desvalorizar, secundarizar e apagar os professores de Educação
Especial que durante décadas construíram a inclusão neste país, é fácil. Mas
isto vai ter um preço. O investimento na Educação Especial Inclusiva na escola
publica, é o investimento na equidade e nem sempre se pode esperar retorno
económico, produtividade ou empregabilidade, quando se trata de incluir as
diferenças e operacionalizar valores. Nada justifica o retrocesso, porque a
fatura virá depois, sob a forma de mais exclusão.
Na prática nada de diferente
Tudo o que hoje é feito em termos
de apoio aos alunos, poderia existir com a lei anterior. O que mudou foi a
burocracia exagerada, os processos mais complexos, as dúvidas e confusões de
escola para escola e um marketing enganador. No fundo o resultado está à vista,
com a redução de investimento, o número de alunos elegíveis para determinadas
respostas ou provas externas, menos recursos, menos turmas reduzidas, menos apoios diretos específicos,
menos respostas concretas para as necessidades mais graves, com contradições
nas nomenclaturas, na aplicação das medidas, na organização dos processos e
tudo, em nome da Inclusão.
A nova Lei não tem ingredientes
que a diferenciem suficientemente da anterior para se dizer que apresenta
melhores soluções. No campo da retórica repete tudo o que se faz há décadas, nos modelos e conceitos apresenta fragilidade científica e no
campo da implementação, não está a proporcionar melhorias. Ao longo desta reflexão,
em vários capítulos, irei abordar diversas situações, que mostram a forma
enviesada como uma retórica inclusiva cheia de convicções e teorias, pode não cuidar das
necessidades individuais, usando a inclusão de uma forma perversa e abrindo a
porta ao regresso da institucionalização. Hoje insiste-se em usar as mesmas
respostas para todos os alunos, numa interpretação completamente enviesada da
Inclusão.
Não há indicadores que esta
legislação tenha melhorado a inclusão nas escolas. Pelo contrário, todos os
relatos que nos chegam falam em desnorte, falta de referências, falta de rigor,
de conhecimento e uma disparidade de práticas, como nunca se verificou nesta
área anteriormente. Surge em alguns locais uma onda “inclusivista” perversa de
quem não sabe realmente o que deve ser feito. Acreditamos que até os serviços
do ME deixaram de conhecer a realidade dos alunos mais graves no sistema. Seria
importante avaliar os reais ganhos de inclusão nas suas dimensões e não
produzir mais números, mais percentagens, mais controlo burocrático.
A criatividade semântica, as
contradições científicas, a falta de formação dos agentes e as fragilidades de
uma fraca clarificação; resultam em práticas díspares, ações erradas e
desinformadas, desinvestimento e recuo do apoio especializado. Enquanto isso,
nada muda na generalidade do ensino em Portugal. Sinais preocupantes, que podem
criar um retrocesso nunca antes verificado e de difícil correção, à medida que
o tempo passa.
__________________________________________________________
Este é a primeira de outras reflexões que irei aqui deixar para que todos possa também pensar e formar as suas ideias e posições sobre o Decreto Lei 54/2008 de 6 de julho, (alterado pela Lei nº 116/2019 de 13 de setembro). São diversos textos que dividirei por capítulos e que pretendem fazer uma análise muito pessoal do estado da Educação Inclusiva em Portugal, à luz do novo diploma legal assim denominado, dois anos após a sua publicação.
👏👏👏👏👏
ResponderEliminarHaja alguem que pense!
ResponderEliminar