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quarta-feira, 10 de maio de 2023

A urgência de uma Rede Pública de Creches e o Direito à Educação desde o primeiro ano de vida.

 


Uma rede pública de creches com tutela única educacional é a melhor forma de ter uma educação da primeira infância com igualdade, qualidade e com educadores dentro da carreira docente. Em vez disso o Estado prefere financiar e depender do sistema privado, negando a consagração do direito à educação das crianças a partir do primeiro ano de vida e perpetuando uma visão assistencial, de um sistema que fica aquém das necessidades.

 

Depois de sempre recusar no Parlamento as propostas de criação de uma rede de creches públicas dentro do sistema educativo, o Governo PS lançou em 2021 um programa que chamou “Creche Feliz” e que pretende tornar gratuita a frequência de creches dos setores social e solidário, alargando ao privado quando não exista resposta. A medida abrange as crianças nascidas após 1 de setembro de 2021, aumentando até 2024, altura em que todas terão gratuitidade.

Este programa, a cargo do Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, não engloba qualquer intenção de investir num sistema público de creches de componente intencional educativa, em complementaridade, que permita cobrir todo o país e todas as necessidades. Só subsidiar o acesso à rede privada não resolve o problema do acesso e da qualidade.

Por outro lado, a verba por criança, não cobre atividades extra de caráter facultativo que façam parte do projeto educativo. Esta situação carece da maior atenção, para evitar a discriminação das crianças com menos recursos no acesso ao que a instituição oferece. É preciso garantir que há limites nestes “extras”, bem como que não existam pagamentos acima do valor contratualizado com o Estado, para não se criarem duas categorias de utentes, os que podem e os que não podem pagar mais, com hipótese de limitação para o número de crianças que não possam” contribuir mais”, pondo em causa a universalidade e a própria equidade.

O direito à educação desde os zero anos

A história recente mostra-nos que só quando existe uma aposta pública forte, a universalidade é possível e as desigualdades são combatidas.  Veja-se a rede de educação pré-escolar, que há 20 anos era muito insuficiente, não tinha um caráter educativo e não cobria o país, sendo maioritariamente do privado e das IPSS, onde havia longas listas de espera, mensalidades elevadas e uma enorme desigualdade de acesso. Em 1997 a Lei Quadro da Educação Pré-Escola criou a rede pública de tutela do Ministério da Educação, universal e gratuita em todo o país, de caráter essencialmente educacional, cujo resultado está à vista com o público a garantir atualmente mais de 60% de uma oferta universal que cobre todo o país, com caráter educativo, o que nunca teria sido possível na modalidade anterior.

De acordo com o relatório do Conselho Nacional de Educação, CNE, referente a 20201 a taxa de cobertura de rede de creches tem vindo a diminuir desde 2015, de 51,1% para 48,8%, ou seja, menos de metade das necessidades. Na região de Lisboa esse número é ainda menor, 44%, para além das enormes desigualdades de acesso no território nacional.

As autarquias têm um papel fundamental em virtude do seu posicionamento de proximidade, quer em termos de Câmaras como de Juntas de Freguesia, desde logo para um levantamento efetivo das carências das famílias e reais necessidades nesta área, como em desenvolver de projetos e parcerias de forma a garantir a universalidade, criar rede pública complementar e gerir a rede de forma integrada.

Pagando a terceiros, o Estado não gere as necessidades, ficando dependente de um sistema privado subsidiado, centrado em objetivos de acolhimento, alimentação, supervisão e saúde, sem a prioridade numa componente de intencionalidade pedagógica. Cria-se uma situação sem alternativas e comprometem-se investimentos numa rede pública de caráter educacional.

O elevado peso que as mensalidades representam no rendimento das famílias e a necessidade de conciliação da parentalidade com a vida profissional, tornam imperativa uma resposta gratuita e que responda às necessidades, mas não podemos esquecer a falta de vagas e de oportunidades que desesperam os pais, numa rede muito aquém do necessário. Para além disso, é a qualidade de vida das crianças que deve estar em primeiro lugar, quer em termos sociais, quer em igualdade de oportunidades de acesso a serviços de qualidade

Sendo a creche um contexto importante na qualidade do desenvolvimento da formação pessoal e educacional, é imperioso o acesso universal e gratuito para garantir a igualdade de direitos fundamentais.

Está hoje demonstrada a evidência da importância das creches como uma resposta educativa fundamental dos 0 aos 3 anos e não apenas um serviço social que permita conciliar o trabalho e a família numa perspetiva cuidadora.

Estudos nacionais e internacionais sublinham que, se as creches e os jardins de infância não forem de qualidade educativa superior, não contribuirão para o desenvolvimento das crianças, especialmente as mais desfavorecidas. Por isso, de acordo com Maria Folque e Teresa Vasconcelos (2018), a qualidade não pode ser apenas estrutural, mas essencialmente pedagógica.

O Ministério da Educação não pode continuar demissionário, nem a estar à margem do sistema de creches, por exemplo, nas suas orientações, sendo imperiosa a consagração do direito à Educação desde o primeiro ano de vida na Lei de Bases do Sistema Educativo e equipara as creches ao pré-escolar. A educação começa desde o nascimento, constituindo-se num direito do ser humano e não nos podemos quedar em respostas de apoio às famílias e entidades patronais.

Apoio à parentalidade e excesso de tempo em instituição

Ainda a CNE, em parecer de 20181, referia que Portugal era o país da Europa onde as crianças dos 0 aos 3 anos passavam mais tempo em creches ou amas, cerca de 39 horas semanais, mais 10 horas que a média europeia. Isto levanta um problema com implicações no desenvolvimento das crianças, sendo importante ter uma rede de creches que pense as questões emocionais e cognitivas relacionadas com os laços e a identificação familiar, envolvendo autarquias, empregadores e as próprias famílias.

Um serviço educativo de qualidade para a primeira infância, deve equacionar a importância da família no desenvolvimento da criança, não podendo ser escamoteadas medidas de apoio à parentalidade e às famílias com elevadas cargas laborais, promovendo um equilíbrio entre os tempos de permanência em instituições e o fortalecimento da família como lugar primeiro de afetos e formação humana.

Esta “Creche Feliz”, está muito longe de uma política integrada que cuide das famílias, das respostas comunitárias e do direito à educação, bem como permitir aos pais uma verdadeira escolha e não uma solução marcada pela inevitabilidade, devido a más condições de vida, exigências laborais ou problemas na oferta.

Justiça para a carreira dos Educadores de Infância das creches

Esta situação levanta questões quanto à necessidade dos educadores de infância serem devidamente integrados na tutela e na carreira docente do Ministério da Educação, garantindo um trabalho profissional no desenvolvimento pessoal, social e pedagógico das crianças, de acordo com as necessidades da idade de cada uma, dentro dos melhores padrões de qualidade, bem como orientações pedagógicas unificadas, legislação comum e supervisão, como em qualquer nível do sistema educativo.

Para além disso prevê-se que a falta de educadores comece a fazer-se sentir, o que obrigaria a uma abordagem global dentro de uma mesma carreira docente, de modo a planificar e combater os efeitos desta situação, que começa a afetar todo o sistema educativo e que, pode penalizar ainda mais o setor das creches, pondo em causa a sua qualificação.

Embora seja cada vez mais reconhecida a importância de um trabalho pedagógico com profissionais qualificados nos processos de desenvolvimento desde o primeiro ano de idade, os educadores que trabalham atualmente em creches não têm o seu trabalho reconhecido como prática letiva e o seu tempo não é contado para a carreira, com os devidos direitos e deveres dos restantes educadores de infância, o que configura uma situação de enorme injustiça e discriminação profissional, que o programa “Creche Feliz” ajuda a perpetuar.

1  O relatório mais recente da CNE, referente a 2021, não dispõe dos dados da cobertura da rede de creches, nem do tempo em instituição.


Foto de cottonbro studio:

https://www.pexels.com/pt-br/foto/pessoa-segurando-estatueta-de-animal-de-madeira-marrom-3661267/


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