Depois de sempre recusar no Parlamento as propostas de criação de uma rede de creches públicas dentro do sistema educativo, o Governo PS lançou em 2021 um programa que chamou “Creche Feliz” e que pretende tornar gratuita a frequência de creches dos setores social e solidário, alargando ao privado quando não exista resposta. A medida abrange as crianças nascidas após 1 de setembro de 2021, aumentando até 2024, altura em que todas terão gratuitidade.
Este programa, a cargo do Ministério do Trabalho,
Solidariedade e Segurança Social, não engloba qualquer intenção de investir num
sistema público de creches de componente intencional educativa, em
complementaridade, que permita cobrir todo o país e todas as necessidades. Só
subsidiar o acesso à rede privada não resolve o problema do acesso e da
qualidade.
Por outro lado, a verba por criança, não cobre atividades
extra de caráter facultativo que façam parte do projeto educativo. Esta
situação carece da maior atenção, para evitar a discriminação das crianças com
menos recursos no acesso ao que a instituição oferece. É preciso garantir que
há limites nestes “extras”, bem como que não existam pagamentos acima do valor
contratualizado com o Estado, para não se criarem duas categorias de utentes, os
que podem e os que não podem pagar mais, com hipótese de limitação para o
número de crianças que não possam” contribuir mais”, pondo em causa a
universalidade e a própria equidade.
O direito à educação desde os zero anos
A história recente mostra-nos que só quando existe uma
aposta pública forte, a universalidade é possível e as desigualdades são
combatidas. Veja-se a rede de educação
pré-escolar, que há 20 anos era muito insuficiente, não tinha um caráter
educativo e não cobria o país, sendo maioritariamente do privado e das IPSS,
onde havia longas listas de espera, mensalidades elevadas e uma enorme desigualdade
de acesso. Em 1997 a Lei Quadro da Educação Pré-Escola criou a rede pública de
tutela do Ministério da Educação, universal e gratuita em todo o país, de
caráter essencialmente educacional, cujo resultado está à vista com o público a
garantir atualmente mais de 60% de uma oferta universal que cobre todo o país, com
caráter educativo, o que nunca teria sido possível na modalidade anterior.
De acordo com o relatório do Conselho Nacional de Educação,
CNE, referente a 20201 a taxa de cobertura de rede de creches tem
vindo a diminuir desde 2015, de 51,1% para 48,8%, ou seja, menos de metade das
necessidades. Na região de Lisboa esse número é ainda menor, 44%, para além das
enormes desigualdades de acesso no território nacional.
As autarquias têm um papel fundamental em virtude do seu
posicionamento de proximidade, quer em termos de Câmaras como de Juntas de
Freguesia, desde logo para um levantamento efetivo das carências das famílias e
reais necessidades nesta área, como em desenvolver de projetos e parcerias de
forma a garantir a universalidade, criar rede pública complementar e gerir a
rede de forma integrada.
Pagando a terceiros, o Estado não gere as necessidades, ficando
dependente de um sistema privado subsidiado, centrado em objetivos de
acolhimento, alimentação, supervisão e saúde, sem a prioridade numa componente
de intencionalidade pedagógica. Cria-se uma situação sem alternativas e comprometem-se
investimentos numa rede pública de caráter educacional.
O elevado peso que as mensalidades representam no rendimento
das famílias e a necessidade de conciliação da parentalidade com a vida
profissional, tornam imperativa uma resposta gratuita e que responda às
necessidades, mas não podemos esquecer a falta de vagas e de oportunidades que
desesperam os pais, numa rede muito aquém do necessário. Para além disso, é a
qualidade de vida das crianças que deve estar em primeiro lugar, quer em termos
sociais, quer em igualdade de oportunidades de acesso a serviços de qualidade
Sendo a creche um contexto importante na qualidade do
desenvolvimento da formação pessoal e educacional, é imperioso o acesso
universal e gratuito para garantir a igualdade de direitos fundamentais.
Está hoje demonstrada a evidência da importância das creches
como uma resposta educativa fundamental dos 0 aos 3 anos e não apenas um
serviço social que permita conciliar o trabalho e a família numa perspetiva
cuidadora.
Estudos nacionais e internacionais sublinham que, se as
creches e os jardins de infância não forem de qualidade educativa superior, não
contribuirão para o desenvolvimento das crianças, especialmente as mais
desfavorecidas. Por isso, de acordo com Maria Folque e Teresa Vasconcelos
(2018), a qualidade não pode ser apenas estrutural, mas essencialmente
pedagógica.
O Ministério da Educação não pode continuar demissionário, nem
a estar à margem do sistema de creches, por exemplo, nas suas orientações, sendo
imperiosa a consagração do direito à Educação desde o primeiro ano de vida na
Lei de Bases do Sistema Educativo e equipara as creches ao pré-escolar. A
educação começa desde o nascimento, constituindo-se num direito do ser humano e
não nos podemos quedar em respostas de apoio às famílias e entidades patronais.
Apoio à parentalidade e excesso de tempo em instituição
Ainda a CNE, em parecer de 20181, referia que
Portugal era o país da Europa onde as crianças dos 0 aos 3 anos passavam mais
tempo em creches ou amas, cerca de 39 horas semanais, mais 10 horas que a média
europeia. Isto levanta um problema com implicações no desenvolvimento das
crianças, sendo importante ter uma rede de creches que pense as questões
emocionais e cognitivas relacionadas com os laços e a identificação familiar,
envolvendo autarquias, empregadores e as próprias famílias.
Um serviço educativo de qualidade para a primeira infância,
deve equacionar a importância da família no desenvolvimento da criança, não
podendo ser escamoteadas medidas de apoio à parentalidade e às famílias com
elevadas cargas laborais, promovendo um equilíbrio entre os tempos de
permanência em instituições e o fortalecimento da família como lugar primeiro
de afetos e formação humana.
Esta “Creche Feliz”, está muito longe de uma política
integrada que cuide das famílias, das respostas comunitárias e do direito à
educação, bem como permitir aos pais uma verdadeira escolha e não uma solução
marcada pela inevitabilidade, devido a más condições de vida, exigências
laborais ou problemas na oferta.
Justiça para a carreira dos Educadores de Infância das
creches
Esta situação levanta questões quanto à necessidade dos
educadores de infância serem devidamente integrados na tutela e na carreira
docente do Ministério da Educação, garantindo um trabalho profissional no
desenvolvimento pessoal, social e pedagógico das crianças, de acordo com as
necessidades da idade de cada uma, dentro dos melhores padrões de qualidade, bem
como orientações pedagógicas unificadas, legislação comum e supervisão, como em
qualquer nível do sistema educativo.
Para além disso prevê-se que a falta de educadores comece a
fazer-se sentir, o que obrigaria a uma abordagem global dentro de uma mesma
carreira docente, de modo a planificar e combater os efeitos desta situação,
que começa a afetar todo o sistema educativo e que, pode penalizar ainda mais o
setor das creches, pondo em causa a sua qualificação.
Embora seja cada vez mais reconhecida a importância de um trabalho pedagógico com profissionais qualificados nos processos de desenvolvimento desde o primeiro ano de idade, os educadores que trabalham atualmente em creches não têm o seu trabalho reconhecido como prática letiva e o seu tempo não é contado para a carreira, com os devidos direitos e deveres dos restantes educadores de infância, o que configura uma situação de enorme injustiça e discriminação profissional, que o programa “Creche Feliz” ajuda a perpetuar.
1 O relatório mais recente da CNE,
referente a 2021, não dispõe dos dados da cobertura da rede de creches, nem do
tempo em instituição.
Foto de cottonbro studio:
https://www.pexels.com/pt-br/foto/pessoa-segurando-estatueta-de-animal-de-madeira-marrom-3661267/
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