Este ano letivo regressaram às
aulas cerca de 1 milhão e 300 mil alunos do pré-escolar, básico e secundário, com
os efeitos reais da falta de professores a fazerem-se sentir. Estamos perante um
sistema com 60% dos profissionais a atingirem a idade da reforma nos próximos 8
anos, acrescidos de um abandono acelerado e reformas antecipadas a piorarem as
previsões. Situação mais que previsível, mas que aparece mascarada de
fatalidade, quando na realidade tem razões para acontecer. Para encarar esta
situação, temos primeiro de perceber as suas causas e como chegámos até aqui.
As causas: Não há fatalidades,
mas sim intencionalidades.
Nunca é demais relembrar que isto
se deve a uma gestão desastrosa dos recursos humanos em educação com cerca de 15
anos, que se focou em critérios meramente economicistas, criando uma situação
draconiana em relação ao acesso à carreira, à progressão e à valorização da mesma.
Os concursos foram piorados para dificultar o acesso, resultando na precariedade
dos contratados, que se tornou insustentável. Chegámos ao ridículo de ter profissionais
ainda contratados, com dezenas de anos de trabalho e média de 45 anos de idade,
bem como professores do quadro com dezenas de anos de serviço, congelados
vários anos em cada escalão tampão, sem perspetivas de subir na carreira.
As normas travão e de congelamento
nas carreiras, foram pensadas para evitar essa mesma progressão, em articulação
com uma avaliação do desempenho, desenhada para bloquear a esmagadora maioria
dos professores nos dois escalões tampão, que, articulada com as cotas, impede a
chegada aos escalões mais altos.
Paralelamente, aumentaram os alunos
por turma e difundiu-se a ideia de que haveria professores a mais, o que
resultou em milhares de desempregados, a par de outro tanto que acabou por
abandonar a profissão. Esta “construção”, foi ainda acompanhada pela destruição
da imagem dos professores, que passaram a ser considerados como mal preparados,
calões e privilegiados.
A divisão para reinar facilitou a deterioração
das carreiras e o aumento da carga de trabalho dada aos docentes, grande parte
dela inútil e que os afasta da sua tarefa essencial. Os mega agrupamentos e a
figura do diretor omnipresente, instalou igualmente nas escolas um clima que
facilita as atitudes de prepotência e centralismo, contrário ao desejável
ambiente democrático e participativo na gestão e nas decisões.
Todo o cenário foi também útil para
a diminuição dos rendimentos efetivos dos professores, bastando analisar meros
recibos de vencimento dos últimos 15 anos, para se perceber que cada professor
ganha, em média, menos 6%, que nessa altura, acrescido com uma perda de poder
de compra de cerca de 20% até 2021, mais a inflação atual de 2022. Este
“contributo” monetário somado ao tempo de serviço congelado e nunca contabilizado,
representa perdas de poder de compra brutais.
A isto acresce o aumento da
carreira contributiva, através da subida da idade de reforma entre 7 a 12 anos, mediante o ciclo, que veio
fazer desmoronar os projetos de vida e a justiça de uma carreira que ainda
pudesse ser minimamente atrativa, para além dos reflexos que isso tem nas
condições de saúde, de trabalho e qualidade do ensino.
O resultado de tudo isto é uma
classe desmotivada, desiludida, sem perspetivas de carreira e com ordenados baixos,
originando a crescente falta de professores, quer por abandono, quer também
pela idade de reforma ou sua antecipação. Entretanto não foi acautelado que se
formavam professores em número suficiente para as mais que previsíveis saídas
devido à idade.
Não adianta vir agora escamotear as
razões dos problemas, ou dizer que é global, porque isto radica na desastrosa
gestão e na degradação de uma carreira altamente desprestigiada por quem a
devia promover, com fatores gritantes de injustiça e uma desvalorização
humilhante. Hoje, deixamos de ouvir arautos do excesso de docentes, da
delapidação da sua carreira e dos seus projetos de vida, que propagandearam os
privilégios da classe e a sua impreparação. Aqueles que deveriam ter sido os
responsáveis por pensar a escola e os seus professores para o futuro, andaram
tão entretidos a poupar dinheiro, que só acordaram quando os alunos começaram
gradualmente a ficar sem aulas. Enquanto isso, andaram também a acolher as
preocupações dos pais e da economia, aumentando o tempo de permanência na escola,
com ideias como a “escola a tempo inteiro”, nem se apercebendo que estavam, na
realidade, a construir uma escola sem os professores e uma escola literalmente
sem professores.
Esta gestão lesiva do sistema público de educação em Portugal, leva-nos
a questionar se não estaremos perante uma intencionalidade política da sua
fragilização, pela consideração que o dinheiro para a educação é uma despesa e
não um investimento, abrindo a porta a outro tipo de modelos. Uma ideia
seguramente muito aliciante para quem quer fazer da educação um negócio; mas
claramente promotora de desigualdades e atentatória de uma sociedade sem
assimetrias, mais justa, mais qualificada, com a escola pública
universal como centro da nossa forma de ver, pensar e viver como povo.
As soluções: Não avançamos sem investimento nas causas
estruturais dos problemas
É fundamental investir na escola
pública precisamente na área da atração de novos profissionais e dos que
abandonaram, bem como na fixação dos existentes. Isso requer atualizações
salariais dignas, carreiras justas, perspetivas de acesso à carreira, com o fim
dos escalões tampão e uma avaliação que promova a qualidade do ensino e não
esta injustiça de deixar antecipadamente claro aos docentes que, por muitos
anos que trabalhem de forma excelente, não vão conseguir.
Requer ainda a vinculação e fixação
dos professores nos quadros de forma rápida, mudar a norma travão, reposicionando
os professores de acordo com o tempo de serviço, bem como a possibilidade de
completar horários parciais. Os concursos nacionais têm de começar mais cedo e ser
mais céleres, sem as burocracias e delongas “informáticas” atuais, embora se
deva continuar a manter a ordem das listas nacionais, prevenindo injustiças e
assimetrias, mesmo na fase de contratação por escola. Será um erro abandonar os
concursos nacionais, ainda por cima sob a justificação de que, quem os
implementa não o consegue fazer como deve ser.
É necessário reduzir a área dos
Quadros de Zona Pedagógica, reposicionar e pagar aos professores contratados de
acordo com o seu tempo de serviço e prever os apoios aos deslocados, que deixam
a família para trás, pagando duas rendas e deslocando-se centenas de
quilómetros. O preço das rendas em muitas zonas do país são, por si só, um
fator de abandono. Os que ficam, pagam para trabalhar e mantêm-se na
precariedade por décadas, o que não passa de uma forma inaceitável de
exploração.
Por fim temos de respeitar a
democracia e a participação nas escolas, evitando climas de autoritarismo e
medo, apostando num local onde se possa participar e gostar de trabalhar. Nessa
linha, o horário de trabalho dos professores tem de ser respeitado, bem como as
suas funções de ensino, com tempo para dedicação aos seus alunos e suas
famílias e de preparação de aulas, em vez de os sobrecarregar com tarefas
inúteis, decorrentes de um desnorte pseudorreformista irrealista, feito à
margem dos professores, que não qualifica a escola, nem resulta na sua melhoria,
apenas sacrificando o essencial.
Bem a propósito,
a Organização das Nações Unidas, ONU, na cimeira “Transformação da Educação
2022”, realizada neste mês de setembro, assinala os cinco pontos que os
governos devem seguir para transformar a educação:
1. Aumentar o investimento em sistemas
públicos de educação de qualidade;
2. Garantir direitos laborais e condições
de trabalho decentes;
3. Investir em formação e desenvolvimento
profissional de professores de qualidade;
4. Confiar e respeitar os professores e os
seus saberes pedagógicos;
5. Envolver os sindicatos dos professores
na decisão política, através do diálogo social.
O que temos: Remendos de
emergência, para que o fundamental fique na mesma
Chegados aqui, poderíamos pensar
que na base de um diagnóstico realista, seriam planificadas uma série de medidas
a curto, médio e longo prazo, sanando os erros sucessivos do passado nos
concursos, na carreira, na organização escolar e nas condições de trabalho, qualificando
o sistema. Infelizmente, não se pode esperar que os responsáveis pelos
problemas, os possam resolver, conforme mostram as medidas efetivamente
anunciadas.
A medida de repensar a mobilidade
por doença é insólita, quer pelo facto de não aumentar o número de professores,
quer também pela mensagem para a opinião pública, colocando também em causa os
atestados médicos e a veracidade desses pedidos. Uma classe que se reforma dez
anos mais tarde, que está envelhecida, com familiares a seu cargo, mas ainda a
trabalhar e com a saúde cada vez mais degradada, não pode ser tratada assim. Desenganem-se
quem pensava que as velhas estratégias de levantar suspeitas sobre a idoneidade
dos docentes, tinham ficado no passado.
Se há problemas, que se fiscalize, mas ofender toda uma classe, é
começar muito mal a lidar com este assunto.
Há também a mudança nas
habilitações para a docência, baixando o nível de exigência e abrindo as portas
para um nivelar por baixo, quando se pretende qualificar a educação pública e
não regressar aos anos oitenta. A formação e as habilitações têm de ser
encaradas de forma séria e não usar a atual situação para diminuir a qualidade
da escola pública, antes pelo contrário.
Paralelamente abre-se a hipótese
das contratações diretas pela escola, em vez da melhoria e otimização da
contratação nacional. Não pode valer tudo para agilizar, quando não se consegue
melhorar os concursos, nomeadamente pondo em causa a graduação nacional, que
garante a justiça do processo. Os riscos de contratações pelos diretores, são
imensos e podem piorar o que já não é bom, acrescentando arbitrariedades,
injustiças e assimetrias. Sem falar na municipalização, que espreita e que pode
contribuir para destruir a universalidade imparcialidade e justiça do sistema.
O Ministério da Educação não se pode demitir de fazer um trabalho
sério nesta área.
As restantes medidas de curto prazo
anunciadas pelo Governo, como a formação de quem quer regressar, estágios
profissionais, ou mudanças de pormenor nos concursos, não passam de cosmética
para evitar melhorar as carreiras e as condições da profissão, ou resolver
problemas estruturais nas carreiras e concursos.
Conforme tantos gostam de dizer, as
dificuldades devem ser encaradas como oportunidades, por isso precisamos de um
plano para o futuro, a começar pela de qualificação da escola pública e dos
seus profissionais.
A resolução da falta de docentes
não se faz com remendos de curto prazo, de eficácia duvidosa e que não tocam no
essencial, perpetuando a velha máxima de atamancar alguma coisa, para que o
fundamental não mude.
Jorge Humberto Nogueira
Professor.
Mestre em Educação Especial e
Inclusão
________________________________________
Photo by
Ivan Aleksic on
Unsplash