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quarta-feira, 8 de julho de 2020

Aulas em setembro: uma reflexão e dez contributos. Será que o ME se prepara para decretar o fim do distanciamento social?


A duas semanas de férias, o Ministério da Educação apresentou finalmente um conjunto de orientações para a abertura e funcionamento do ano letivo em setembro, cuja preparação já desde maio poderia estar em curso, dado que sempre se soube a necessidade de equacionar cenários de contingência.Para além de atrasado e de não ter envolvido os principais intervenientes, este conjunto de ideias, tenta mistificar o que a realidade demonstra: não há recursos financeiros para desenvolver o ensino presencial com afastamento social, pelo que o seu anúncio como prioridade e a manutenção de orientações em diversas áreas, como se o presencial fosse uma possibilidade, pode ser uma forma de pressionar as escolas para solucionarem a situação, quem sabe, esquecendo o distanciamento social de segurança nas salas.

A retórica do ensino presencial como prioridade está desfasada das condições objetivas no terreno e medidas que possam sustentar esse desígnio, pois nada daquilo que seria importante para implementar o presencial está a ser feito, nomeadamente a redução/desdobramento e aumento de professores.Temos assim uma proposta de Plano A, condenada à partida, porque não cabem todos os alunos da turma dentro das salas por falta de espaço e pelas mesas serem duplas. Isso requer investimento. Logo, a redução ou o desdobramento das turmas, seria a solução. Acontece que as turmas não vão ser reduzidas, uma proposta do Bloco no Parlamento que foi chumbada e que resolveria verdadeiramente a situação. Qualquer destas duas opções redução ou desdobramento, exigiria o aumento significativo de professores a ser contratados e o ME não assume os custos. Ou seja, o Governo sabe que o ensino presencial não é possível de compatibilizar com o afastamento social, sem aumentar os custos com professores.Mesmo nos chamados grupos prioritários, até ao 2º ciclo, e cujo ensino presencial é fundamental, não são apresentadas medidas para o tornar possível, nomeadamente a redução das turmas ou contratação de professores. Portanto de nada serve dizer que são prioritários, porque será impossível cumprir o distanciamento. Nem para estes alunos é feito qualquer esforço de investimento que possa ir de encontro à retórica.

Em resumo: o ensino presencial não vai ser possível porque não há dinheiro. Que isso seja assumido, em vez de andarmos a fingir que vamos priorizar uma coisa que sabemos condenada à partida. Nem os grupos prioritários.

MAS ATENÇÃO: A não ser que, de repente, as normas de afastamento social da DGS sejam contornadas para as escolas e se ache possível ter as turmas atuais nas salas atuais sem o afastamento exigido a todas as outras atividades. Com efeito, esta ideia que à partida parece só poder existir na cabeça de pessoas sem o mínimo preocupação pela saúde dos outros, não parece assim tão fora da coagitação do ME, particularmente do Ministro.Senão vejamos. No pré-escolar, os alunos vão estar todos nas salas sem redução de grupos, e sem uso obrigatório de máscara. Questionado pelo Expresso, sobre esta situação de risco potencial, o ministro afirma que as regras para mitigar os riscos “não se cingem ao afastamento social”, elencando a separação entre grupos a desinfeção de materiais e das mãos etc, dando a entender que chegam. E aqui fez-se luz. O Ministro não afasta a ideia, antes pelo contrário, de ser omitida a distância social dentro das salas e, obviamente fora delas por arrasto, acrescentando ainda a ideia perigosa de que “não temos nenhum caso conhecido de propagação em meio escolar”, referindo-se às situações atuais em que o contagio terá sido feito fora das escolas. Mas que contas são estas se as escolas estão fechadas? Uma minoria residual de alunos tem atualmente aulas presenciais e mesmo assim há largas dezenas de casos conhecidos que fecharam estabelecimentos. Os próprios pais tiveram medo de deixar os filhos nos JI que funcionaram a 10%. Esta insinuação de que nas escolas não se tem transmitido o vírus, com base numa realidade que não tem nada a ver com o que se avizinha, parece um ensaio perigoso para justificar o injustificável. Eu não quero acreditar, que o ME, na ausência de investimento no afastamento dos alunos e dos professores, nem que fosse nos grupos prioritários, vai admitir um cenário de total ensino presencial sem diminuição dos grupos por sala/turma. Assumir este tipo de risco, com a ligeireza com que é insinuado, por falta de investimento, é bem revelador do tipo de intenções que se vislumbram nos nossos responsáveis. Tanto que o Ministro remata a resposta com a frase “no 1º ciclo é isso que teremos”, referindo-se ao pré-escolar e à medida de isolamento dos grupos entre si, para no caso de um aluno apanhar só esse grupo é isolado, ou seja, distância social no Pré e 1º ciclo dentro de sala com redução de turma, parece não ser importante. Nas orientações do Ministério pode ler-se que nas salas "sempre que possível deve manter-se um distanciamento físico entre alunos e aluno/docente de, pelo menos 1 metro".  Mas nas normas da DGS o distanciamento entre pessoas deve ter no MÍNIMO 2 metros.  É esta a forma de conseguir priorizar o ensino presencial nos mais novos e pelos vistos, em todo o ensino: contornar as normas de segurança. Percebo agora a confiança do Ministro. Só espero que as escolas e os pais percebam a tempo e não embarquem em aventuras que lhes podem sair caras em termos de responsabilidade. 

Plano B sem plano 

Passamos então para o Plano B, ou seja, ensino misto, que é a realidade óbvia e possível de setembro, caso as normas de afastamento da DGS sejam válidas para as escolas portuguesas. Nesta modalidade, por razões de afastamento, parte da turma está na escola, enquanto a outra metade está em trabalho autónomo ou síncrono online. Depois trocam as metades. Dado que se mantém a falta de investimento na contratação de professores, o tempo presencial na escola será sensivelmente metade do atual horário presencial, em virtude dos horários dos professores e do tempo letivo existente. Portanto o Plano B, de ensino misto, quer na realidade dizer que metade do tempo que os alunos têm de aulas será passado na escola e a outra metade em Ensino à Distância, quase totalmente em trabalho autónomo, já que as sessões síncronas serão extremamente mitigadas, pois os docentes têm de assegurar dois turnos presenciais, o que lotará os seus horários. 

Esta parte à distancia já se revelou extremamente problemática e desigual anteriormente e não há razões que nos levem a crer que irá melhorar, por 3 razões essenciais: a primeira porque os alunos continuam sem meios tecnológicos; a segunda porque se mantém uma elevada iliteracia tecnológica em muitos alunos e em muitas famílias e em terceiro lugar porque os professores vão estar sobrecarregados com dois turnos de ensino presencial, pelo que o tempo dos alunos em casa será essencialmente autónomo, dependendo de apoios e desenvolvimento pessoal que muitos alunos não têm. Para além da não existirem meios tecnológicos logo à partida.

Torna-se, por isso, óbvio que há duas áreas que neste momento necessitavam de orientações claras: a avaliação e os currículos. Como é que se pode pensar que os alunos passem metade do ensino fora da escola, que se mantenham as formas de avaliação, os critérios, os exames, a aferição, e a totalidade das aprendizagens do currículo? Mais uma fantasia do ME, que nem cria condições objetivas para um Plano B. Por um lado, as dificuldades do ensino à distância mantêm-se e por outro lado, quer fazer-se crer que tudo vai continuar como dantes nos currículos e na avaliação, numa situação em que os alunos só terão metade do enino presencial. E aqui nem estamos a falar de investimento financeiro, estamos a falar de organização, planeamento e realismo, para além da necessária competência técnica e conhecimento da realidade do sistema. Um Plano B bem organizado, com apoios e com planificação atempada iria ser também uma boa forma de prevenir o Plano C, que, caso se venha a implementar, será um dos maiores problemas que o ensino português alguma vez terá de enfrentar. Nessa altura virão à pressa dizer que afinal os exames assim e os currículos assado, como sempre apagar fogos a correr atrás do prejuízo. 

Não se aprendeu com a experiência? 

No entanto, há um conjunto de medidas e investimentos que foram anunciados. Isto resolve a situação? Não. Porque o essencial está dito em cima. As medidas anunciadas não encaram as questões de frente, são paliativos para mistificar a falta de investimento em medidas essenciais. Destacamos três delas:
  
   1-    Reforço de horas e professores, no equivalente a 2500 horários completos. Dito assim parece fantástico. Mas o sistema tem mais de 1 milhão e seiscentos mil alunos para cerca de 145 mil professores, dos quais mais de 70% têm mais de 50 anos, pelo que este mini investimento não vai servir para dividir grupos, nem daria sequer para impor o afastamento social nos grupos prioritários. Nem deve chegar para repor os professores que estão em grupo de risco e que vão ficar de atestados médicos. Segundo o ME, estas horas de docência são destinadas a coadjuvações, apoios a alunos com mais dificuldades, apoio tutorial específico, entre outas tarefas de compensação das matérias não dadas. Claramente insuficiente, esta medida, permite alguns apoios e é melhor que nada, mas radica na ideia de que vamos ter um ano normal, onde se vão recuperar as aprendizagens não efetuadas num período inteiro e ainda se vai dar todo o currículo, bastando umas compensações e apoios de umas semanas.

   2-    Quatrocentos milhões para o digital. Já se percebeu que a simples presença de um computador não é, por si, sinal de que há uma melhoria no ensino, ou que automaticamente os alunos em casa o sabem utilizar. Esta operação de marketing, necessita de concretização e motiva várias perguntas. Por exemplo:
          a.    Melhoram os servidores, as redes, os serviços de internet e equipamentos nas escolas? Quantos? Como? Onde? Quando?
          b.    Vão ser dados a quantos alunos para estar em casa ou na escola?
          c.    Quando as aulas se iniciarem estarão disponíveis, dado que há concursos e prazos?
          d.    Como se garante a manutenção, a atualização e o software dos equipamentos?
Entre outras questões. Pelo andar da carruagem, não se sabe absolutamente nada de concreto e em setembro lá estaremos. De recordar que atualmente, a grande maioria dos equipamentos cedidos às famílias em determinados municípios, foram retirados das escolas como cedência e vão ter de regressar rapidamente porque vão ser necessários em setembro.Este suposto plano para digitalizar o ensino, se não tiver em conta as necessidades específicas de cada realidade, se for feito de forma standard no país e se não for complementado com apoio técnico e formação digital para os alunos, escolas e famílias; não vai resolver nenhum dos problemas verificados durante o terceiro período. Continuaremos a ter os mesmos problemas, pois sabemos que apesar da cedência de equipamentos se acentuaram desigualdades dos alunos que menos acederam ao apoio e ensino das escolas.  
   
3-    Mais tempo de aulas. Continua o irrealismo de pensar que o currículo é todo para dar a todo o custo. Mais tempo, não resolve a qualidade do trabalho, não mitiga riscos, nem compensa minimamente um regime misto, para além da sobrecarga que isso representa nos professores, que têm de desenvolver todo um conjunto de atividades organizativas e avaliativas nas escolas nas paragens letivas. esta questão suscita também a necessidade dos professores ficarem bem vigilantes quanto ao cumprimento do seu horário de trabalho, dado que o 3.º período foi uma exceção de emergência, onde aconteceram todo o tipo de atropelos, e agora já era suposto haver uma planificação das coisas. 

Dez contributos

Já que, mais uma vez serão as escolas a resolver as questões, estando já a verificar-se um enorme volume de trabalho para abrir em setembro, aqui deixo 10 contributos de acordo com a análise anterior:      

     1-    As escolas têm de obter orientações concretas do ME e da DGS sobre se o afastamento social é ou não imperioso, ou se está a preparar-se uma situação onde a falta de investimento, justificará colocar em risco milhões de alunos, de professores e de famílias.

     2-    Não flexibilizar regras de segurança como o afastamento, mesmo que o Ministério da Educação aponte essa solução. Mais tarde sabemos bem que as responsabilidades serão pedidas às escolas, sendo fundamental exigir indicações precisas e claras da DGS nesse sentido.

     3-    Tentar em cada Agrupamento, com os meios possíveis, o ensino presencial para os alunos até ao 6º ano, mas com afastamento social, nem que isso signifique parcerias com outras entidades, de forma a ter mais espaço, ou concentrar professores nestes anos, aumentando progressivamente o ensino não presencial com a idade. Deveríamos rever a distribuição de serviço e centrar recursos no ensino, para tentar colmatar a falta de investimento em professores.

     4-    Ter tudo preparado para o Plano B a arrancar em setembro. Horários, grupos, edifícios, tempos, orientações uniformizadas, flexibilização da avaliação, dos currículos e priorizar as competências básicas e capacidades, naquilo que for possível às escolas, na ausência de preparação do ME nestas áreas.

     5-    Exigir do Ministério o ajuste da avaliação e dos currículos a nível nacional, tendo em conta o Plano B e, muito provavelmente o Plano C em muitas escolas, dado que à data, o ME age como se estivéssemos numa realidade diferente e não fosse mais que provável em setembro um Plano B, para o qual não há orientações nem planificações nestas duas áreas centrais. Também o calendário escolar prevê todas as formas de avaliação externa, como se nada se passasse em Portugal.

     6-    Parar todas as atividades supérfluas que não tenham nada a ver com o ensino aos alunos e que ocupam imensas horas aos professores. Aqui o Ministério tem também que parar de exigir às escolas tarefas inúteis e os professores têm de estar vigilantes no respeito pelo seu horário de trabalho.

     7-    Reduzir burocracia e recorrer ao digital para as questões administrativas, idas à escola, à secretaria, aligeirando todo o trabalho não essencial e que dependa da organização da própria escola.

     8-    Fazer um Plano integrado com as necessidades dos diferentes cenários e solicitar ao Ministério da Educação os recursos necessários a um ensino de qualidade e com segurança, incluindo redução de turmas e mais professores.

     9-    Criar equipas de trabalho para o Ensino à Distância que possam planificar formação digital para todos os intervenientes, combater a iliteracia digital e as desigualdades, contratualizar apoio técnico para os muitos problemas que irão ocorrer e uniformizar as plataformas e meios de comunicação utilizados por todos, exigindo cabimentação orçamental para tal.

     10-  Envolver os pais, autarquias, organizações locais e profissionais, na busca de soluções e, acima de tudo, na partilha de responsabilidades e na definição de princípios de segurança e saúde, para que as escolas não estejam sozinhas.

 Jorge Humberto Nogueira


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