Contributos e prioridades para pensar um ano letivo em situação
de pandemia.
Para organizar ideias e propostas partimos de três pressupostos:
a) O Ensino a Distância não é a Escola, nem tão pouco a pode substituir; b) sem
Escola presencial as desigualdades agravam-se em todas as áreas e c) há grupos particularmente
vulneráveis, pois necessitam do ensino presencial, até para o seu próprio
desenvolvimento.
Sobre o primeiro pressuposto, nunca é demais salientar que a
Escola não é a mera transmissão do saber, mas sim um sistema complexo de
relações entre alunos e professores, onde se cria um ambiente natural de
aprendizagem, que não se limita ao ensino, mas que desenvolve de forma global o
ser humano, em termos sociais, afetivos, comunicacionais, cognitivos e motores.
É na escola que se estabelece uma identificação do eu e das regras sociais de
uma comunidade e onde se vivenciam valores. É na Escola que se aprende a estar,
respeitar e viver em grupo, numa intrincada teia de relações e diálogos que promovem o desenvolvimento cognitivo. É também na Escola que adultos
qualificados estabelecem os desafios necessários e atempados, que cada idade
própria necessita enfrentar, numa interação que promove um ser humano mais
rico, mais completo e com as ferramentas necessárias para um futuro mais
empreendedor, livre, crítico e igual. É inegável o papel que os professores
representam nesta situação à distância, mantendo contatos, encontrando
estratégias, imaginando, ajustando e dando o seu melhor a pensar nos alunos e
nas suas famílias, sendo, mais uma vez, os obreiros reais de uma situação, onde
o Ministério da Educação andou a reboque, não interveio atempadamente, não organizou,
demonstrando a sua impotência face à realidade. O Ensino a Distância é uma
aproximação possível em situação de crise, onde professores, pais e alunos
empreendem um esforço enorme, para ter acesso ao que for possível desenvolver e
minimizar os efeitos nefastos do fecho das escolas. O computador, como
ferramenta pedagógica, nunca poderá substituir um professor, nem tão pouco
representa, por si só, qualquer melhoria no que quer que seja. É essencial não
ficar satisfeito ou resignado com o que temos, mas antes apreensivo e
cauteloso, em relação às consequências da possibilidade de um ano letivo
inteiro nestas circunstâncias, mesmo que parcialmente.
Em segundo lugar, não podemos ignorar que ficou a nu o papel
fundamental da Escola na promoção da igualdade e na construção de uma sociedade
mais justa, que previne a exclusão e desenvolve processos de equidade
individual e social. A fragilidade vivida por muitas famílias e crianças, no 3º
período, foi o retrato fiel do que pode acontecer quando uma sociedade pensa
que pode subsistir sem uma Escola Pública forte. Ficou patente que cada cêntimo
investido na escola é dinheiro bem gasto e que a valorização dos professores e
funcionários é a valorização de toda uma sociedade. A escola espelha toda a
sociedade e pode, em muitos momentos, ser esse reflexo; mas encerra também essa
esperança luminosa, de uma transformação para melhor. Foi possível verificar a
desigualdade de acesso de milhares de alunos, não só em termos tecnológicos,
mas também de materiais, de apoio familiar, económico, apoios pagos, acesso à
cultura, ao lazer e a experiências enriquecedoras. Ficou também clara a
iliteracia digital de muitas famílias e alunos, no uso da tecnologia. Não basta
ter um computador e estar em sessões síncronas, para combater as desigualdades.
O problema reside em diversas dimensões da organização social e a Escola
demonstrou ser a instituição onde se mitigam as desigualdades com medidas de
equidade para os diferentes pontos de partida. Uma sociedade mais justa, mais
igual e mais desenvolvida, não se constrói sem uma Escola presencial centrada
na ciência, na liberdade, na democracia e na diversidade.
Por último, há que refletir sobre um conjunto de alunos, cuja
não frequência da Escola, pode causar sérios problemas de desenvolvimento, que
não ocorrem em idades mais avançadas. Diz-nos a ciência que, quanto mais novos,
mais permeáveis somos a formar a nossa personalidade, os valores e o sistema
nervoso central, de uma forma indelével e construtora do adulto que seremos. É
também demonstrado que quanto mais cedo forem detetadas e apoiadas as
problemáticas específicas, mais ganhos se poderão ter. Outro pressuposto do
desenvolvimento humano é que há etapas e momentos do nosso desenvolvimento que
se constroem sobre outras, numa progressão cumulativa baseada no confronto com
os desafios e interações adequados e no tempo certo. Em idades mais jovens, as
crianças não têm ainda determinadas capacidades e níveis de desenvolvimento,
que lhes permitam compreender e interagir com a realidade de forma autónoma e
eficaz. Estamos a falar das crianças do Pré-Escolar, 1º ciclo do Ensino Básico
e dos alunos com Necessidades Educativas Especiais. Trata-se de uma população
sem autonomia para aprendizagem independente e para quem a escola não é apenas
o acesso ao conhecimento e aprendizagem, mas é vital para o seu desenvolvimento
cognitivo global, podendo existir problemas causados pela falta de uma ação
atempada e interações competentes. São também aqueles que mais aprendem pela
ação, pela interação, pela socialização e pelas atividades práticas e
corporais. É também nos primeiros anos de escolaridade que se desenvolvem as
aprendizagens básicas essenciais de âmbito psicomotor, linguístico, socio
afetivo, pensamento lógico e as ferramentas de leitura, escrita e matemática,
estabelecendo uma base sólida para todo o desenvolvimento e para as exigências
escolares e sociais futuras. De salientar, que se trata de uma população longe
de ter adquirido autonomia no uso de ferramentas tecnológicas para aprendizagem,
ou uso autónomo na vida diária, sendo os mais prejudicados no Ensino à
Distância.
Ao mesmo tempo que esta população se torna prioritária em termos
de ensino presencial, é paradoxalmente, aquela que enfrenta maiores riscos de
contágio. Não é fácil entenderem o afastamento social e regras de isolamento e
contágio, agindo de forma preventiva autonomamente; como também são
naturalmente crianças em busca de interações para o seu desenvolvimento,
funcionando como imanes, na descoberta do outro e nas atividades de contato e
exploração escolar e social. Se a esta população juntarmos alunos com problemas
graves de saúde, estamos perante um grupo a necessitar de toda a atenção na
abertura das escolas.
Tendo por base os pressupostos anteriores, podemos contribuir
como algumas ideias de base, para a programação do próximo ano letivo, tendo em
conta que, se queremos uma escola presencial, há que começar hoje a
planifica-la, sob pena de voltarmos a uma situação de correr atrás do prejuízo.
Para além disso, estamos perante uma boa oportunidade de repensar diversas
dimensões da escola para a melhorar.
1-
As crianças até aos 10 anos e/ou com NEE, devem ser prioritárias
na frequência escolar presencial a tempo inteiro, acedendo a aprendizagens e
interações de qualidade através dos seus educadores e professores, bem como
serviços adequados de Intervenção Precoce, Educação Especial e Saúde Escolar.
Os recursos e medidas a desenvolver terão de ser primeiramente focados nesta
população, quer em termos de prevenção, como de afastamento, criação de grupos
mais pequenos, salas separadas e todo o tipo de normas a implementar, mesmo que
isso signifique um redobrar de recursos humanos e materiais.
2-
A experiência mostrou que, em muitos casos, os professores
reinventaram o ensino, centrando a sua ação em atividades de apoio aos alunos e
famílias, tarefas mais centradas nas capacidades, criatividade, desafios e
muitas outras. Sem o peso de um currículo monolítico centrado nas aprendizagens
formais, foi possível libertar o ensino para o que verdadeiramente importa. No
próximo ano, poderá haver lugar a grupos mais pequenos ou ser necessário estar
menos tempo presencialmente, por isso, seria interessante aproveitar este
recomeço, para reformular os currículos nacionais, dando espaço para atender a
diversidade, melhorar a inclusão, mais colaboração, diferenciação pedagógica e
desenvolvimento verdadeiramente centrado nas capacidades, nas dimensões cognitivas mais interessantes, na autonomia dos alunos, dando mais tempo
para acomodar as aprendizagens.
3-
Os professores mostraram também grande criatividade, encontrando
soluções, materiais e estratégias alternativas e recursos diversificados. No
próximo ano seria uma ótima oportunidade para dar mais autonomia aos docentes,
permitir às escolas uma verdadeira gestão curricular e flexibilidade, incluindo
aqui também a tecnologia, para termos aulas mais inovadoras, experiências mais
ricas com maior criatividade e diversidade de estratégias.
4-
Toda a organização escolar foi posta à prova neste terceiro
período, verificando-se uma adaptação repentina sem precedentes na forma de
trabalhar e de gerir a Educação. Com o que se aprendeu, seria importante
investir em mudanças necessárias desde há muito. Turmas mais pequenas, salas fixas, menos
professores por turma, permitindo mais individualização. Libertar as escolas e
os professores de trabalho inútil, imposto por uma organização controladora e
centralista, sem ter em conta as necessidades dos Agrupamentos, nem a
disponibilidade dos professores para ensinar. Libertar finalmente os
professores para se dedicarem ao ensino e aos seus alunos.
5-
O computador e os diferentes meios tecnológicos a usar no
ensino, são ferramentas importantes, quando utilizadas de forma adequada pelos
professores e alunos, necessitando de uma aprendizagem e treino no seu uso,
para todos poderem usufruir com autonomia e utilidade pedagógica. A literacia
digital deve ser promovida na escola, não só pelo ensino formal, mas também
pelo uso mais sistemático de ferramentas digitais. O aumento do seu uso deve
estar integrado numa política de melhoria qualitativa do ensino e no
desenvolvimento da aprendizagem específicas, tendo em mente que não basta a sua
simples presença.
6-
Por fim a avaliação. Já é tempo de revisitar o sistema de
avaliação centrado na medição do saber, nas provas sumativas por escola ou
nacionais, na necessidade de classificar, seriar e comparar alunos e escolas. Sem
falar no acesso ao Ensino Superior. Para o ano seria interessante retomar uma
avaliação contínua com caráter mais formativo, que servisse a aprendizagem e o
crescimento dos alunos, libertando o ensino deste permanente machado, que
condiciona todo o sistema, inclusivamente as práticas letivas. Se queremos um
ensino melhor, isto algum dia terá de mudar no nosso país. Seria importante
promover uma avaliação centrada na mais valia e no desenvolvimento dos
potenciais individuais, usando produtos diversificados e adequados aos momentos
e aos alunos, em detrimento de da classificação e da competição desigual.
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