O estado da Educação Inclusiva, três anos após a nova legislação que a regulamenta, nomeadamente do Decreto Lei n.º 54/2018, com posterior alteração pela Lei 116/2019, tem o seu caminho, mas a efetiva melhoria das práticas e da organização escolar, deixa muito a desejar.
Este autointitulado “Regime de Educação Inclusiva” não aborda o assunto de forma integrada, criando, em vez disso, um quadro legal setorial agregado às “Necessidades Específicas” o que, na prática, alimenta a exclusão.
A inclusão constrói-se com decisões articuladas e
abrangentes, não só na sala de aula, mas também na escola e em todo o sistema e
estruturas. A Inclusão é um princípio que deve estar presente em todas as leis
e nas diferentes dimensões do sistema educativo, motivando mudanças e melhorias
qualitativas.
Não existem mecanismos que abordem os problemas estruturais
de fundo que causam exclusão, como as desigualdades sociais e a pobreza, apenas
maquilha a situação, enquanto se continuam a perpetuar as situações de exclusão
social dos alunos. Nem tão pouco representa uma melhoria ou alteração
substancial da anterior legislação, pois também nessa altura as ideias base
eram as mesmas, só que agora encontram uma continuidade, sob outra roupagem.
Esta legislação não teve por base a avaliação da anterior, resultando
que muitas das situações positivas verificadas, não fossem tidas em conta, nem
todo o passado de décadas de construção inclusão de muitos docentes, como por
exemplo os de educação especial. Surge como se fosse só agora que a inclusão nasceu, e nada houvesse
no percurso passado de décadas.
Neste momento não existe uma coerência legislativa,
nomeadamente em termos de flexibilidade e inclusão. Dizer que a escola
inclusiva existe, já inibe o processo de implementação de linhas em todo o
sistema, onde são necessárias reformas mais profundas neste âmbito. Para além
disso existe uma formatação de políticas centralizadas e homogéneas, embora a
inclusão deva ser heterogeneidade de soluções e formas de estar, envolvendo
todos os diferentes serviços.
A Inclusão é transversal a todo o
sistema, a todos os professores e a todos os alunos, não apenas para alguns,
quando apresentam dificuldades de aprendizagem.
Não se olha a educação Inclusiva como uma
forma da escola acolher, promover e ensinar em igualdade, alunos
tradicionalmente desfavorecidos ou vítimas de exclusão, como os alunos
migrantes de diferentes gerações, refugiados, alunos LGBTQI+, alunos
emocionalmente fragilizados, doentes, alunos abusados, vítimas de violência
familiar, de bulliyng, em risco social, de etnias, minorias religiosas,
culturais … ou até, aqueles a quem a escola não consegue responder.
Tantas áreas importantes ficam também sem resposta, como a transição e acompanhamento pós-escolaridade, inclusão no ensino superior, escolas e cursos profissionais, emprego protegido, apoio às famílias, respostas após escolaridade obrigatória, ensino noturno, estágios de preparação para uma vida ativa, acesso a direitos, educação sexual/sexualidade, entre muitos outros aspetos articulados entre a Escola e os diferentes serviços, pois só uma resposta global e integrada pode ter efeitos duradouros.
Continua a não existir uma verdadeira autonomia das escolas,
dado que o Ministério da Educação não confia nelas, mantendo um controlo com
bases de dados e processos normalizados, contrários à autonomia dos diversos
contextos.
Necessidades especializadas diluídas a pretexto de mais
inclusão
Não nos podemos esquecer, que há alunos que continuam a
precisar de educação especial e de ser apoiados diretamente por estes
professores. No entanto, divulga-se a ideia de uma diluição de todos, num só
“saco” de suposta inclusão, dado que são todos “alunos”. Sem equidade, sem ter
em conta as especificidades, de muitos alunos, não há igualdade, logo, não há
inclusão.
Não é pelo fato de se decretar a educação Inclusiva que
deixam de haver alunos a necessitar de especialistas que saibam criar e
trabalhar em contextos inclusivos e não de uma visão assistencialista e
terapêutica dos agora chamados “alunos das Adicionais” ou “alunos da Inclusão”,
quando esta situação origina situações de exclusão. Há saberes específicos que
não se podem perder e a educação especial, sempre que necessária, deve estar
presente.
Também na formação destes docentes devem manter-se as duas
vertentes de conhecimento, a educação inclusiva e os saberes específicos da
profissão.
Querer transformá-los em docentes de inclusão, não vai capacitar
de repente toda a escola, pois todos os professores são de inclusão. O que se
fez foi mudar algo, enquanto toda a escola continua na mesma, deixando algo
para trás, que é essencial.
Semântica criativa de modelos e nomenclaturas promove desnorte
No processo de categorização, não se compreendem opções
tomadas, pois é importante ter informação rigorosa para promover a pessoa e
alocar recursos, garantindo necessidades especializadas. Há levantamentos que
deixaram de ser feitos pela inexistência de nomenclaturas comparáveis,
dificultando a organização de respostas e a avaliação e monitorização do
sistema.
Portugal não tem critérios de elegibilidade rigorosos, como
noutros países, o que transforma o sistema multinível num conjunto de lugares e
numa caraterização, que acaba por ser um sistema de classificação e uma forma
de elegibilidade para determinadas respostas a para a educação especial . Nada
disto foi preparado quando a nova legislação saiu, logo, a monitorização
encontra-se comprometida.
Há uma política de renomeação de termos e de conceitos, sem
que a linguagem tenha um valor concretizável nalguma mudança real na ação ou
melhoria de funcionamento. Abandonam-se
termos e nomenclaturas internacionalmente estabelecidas e basta agora ler como
as nomenclaturas se constroem nas escolas: são os alunos do 54, os alunos das
Seletivas, alunos com adaptações curriculares, necessidades especiais de saúde,
alunos com graves barreiras ao desenvolvimento e aprendizagem, Necessidades
Específicas, podendo também ser alunos com RTP. Isto coloca num grande
saco todos os alunos, sem a correção científica e até pedagógica de
caracterização de condições intrínsecas e esconde alunos que necessitam de uma
especial atenção e de políticas de promoção. Para além disso mantém uma
classificação estigmatizante, por medidas, sob a capa de que o não faz.
Em relação às medidas de apoio que a lei contempla, a
situação mais criticada prende-se com a apresentação da “Diferenciação
Pedagógica”, como uma medida apenas para implementar em caso de necessidade e
não como um modelo pedagógico que se quer generalizado e que é a base de uma
educação inclusiva. Desta forma promove-se uma “medida” setorial, permitindo
que o sistema continue igual e não se altere, de forma a que todos os docentes
pudessem ser, afinal, docentes de inclusão.
O Desenho Universal para
a Aprendizagem deveria ser uma forma preventiva e de planificação global, ou
seja, como olhar a escola e o ensino em geral e não só como o professor
planifica a aula, mas nem sequer é usado nas próprias planificações das aprendizagens
essenciais de âmbito nacional.
Preocupa ainda a forma assimétrica como a legislação é
aplicada no país, sem um período de acompanhamento, bem como a necessidade de
“enxugar” os modelos paradigmáticos contidos. Não está a haver consistência na
aplicação, nem a implementação de mecanismos de regulação e de melhoria,
promovendo situações díspares, algumas delas contrárias ao que se entende como
inclusão.
Sem investimento na educação inclusiva, aumenta a exclusão
Os recursos humanos estão a revelar-se manifestamente
insuficientes em todas as dimensões, com falta de acompanhamento de assistentes
operacionais, apoios e tutorias lotados de alunos e carência de professores nas
diversas respostas diferenciadas ou mesmo parcerias e tutorias.
Ao mesmo tempo existe uma preocupação com a crescente
contratação externa de serviços, descentrado as equipas de intervenção do
contexto escolar, não se entendo porque não são as próprias escolas a ter as
suas equipas técnicas inseridas em meio escolar, num trabalho efetivo de
promoção da inclusão.
No âmbito do
Decreto Lei n.º 3/2008, estava previsto que as instituições de educação
especial se reformulassem, tivessem um tempo de adaptação, para se constituírem
em CRI e caminhassem conjuntamente com as escolas numa via mais inclusiva, onde
os seus recursos revertessem para a escola pública. Esta mudança está por
fazer, e há uma reversão neste caminho. Também há muito a fazer na articulação
entre serviços, dado que a inclusão também pressupõe o envolvimento das
estruturas mais macro.
O
financiamento às escolas mantém-se altamente deficitário, insistindo-se na
ideia que se pode implementar a inclusão a custo zero, ao mesmo tempo que se
promove o financiamento de recursos e serviços externos, promotores de exclusão,
com condições para uma terciarização na obtenção de respostas, em detrimento do
necessário financiamento da inclusão, ou seja, das próprias escolas.
Fazer
algo setorial, sem um olhar integrado de diversas áreas
A Equipa
Multidisciplinar de Apoio à Educação Inclusiva, EMAEI, está claramente deslocada
e isolada, sendo difícil perceber onde se insere na hierarquia da escola e que
funções terá, a não ser as que já existem noutras estruturas, nomeadamente o
Conselho Pedagógico e Coordenações. Esta equipa, para além de não ser
multidisciplinar, não deve substituir as restantes estruturas e, muito menos sobrepor
ou “captar” competências, dos lugares onde elas naturalmente devem pertencer,
pois é isso que é inclusivo. Esta equipa deveria integrar o Conselho Pedagógico,
de forma a que toda a articulação seja mais facilmente operacionalizada, dotando
este órgão de competências na ação e nos processos pedagógicos e não se
quedando por meras competências administrativas. Para tal, a sua criação deve
verificar-se noutros patamares legislativos. As suas competências devem ser
pensadas e geridas de forma integrada, como os apoios, a intervenção em sala de
aula, os projetos e os mais variados processos, para promover a qualidade dos
trajetos educativos. O contrário leva ao risco da desintegração. Aqui também
cabem as mudanças de uma escola unipessoal, para uma gestão pedagógica mais
participada.
A redução de
alunos por turma é fundamental para qualificar a escola, gerir os espaços e a
aprendizagem, mas é um ponto em que se recua, procurando fazer crer que, estando
os alunos a ser canalizados para respostas mais globais e gerais, a redução de
turma, deixa de ser imperiosa para melhorar as condições de ensino e
aprendizagem.
A formação
inicial deveria formar professores para a inclusão, dotando-os de ferramentas e
formas de saber fazer, de trabalho em equipa e de colaboração. Os efeitos desta
formação deveriam ser alvo de monitorização e a escola deveria fazer parte
desse processo no elencar das suas necessidades e contribuir para a melhoria da
formação. Ainda nos cursos de formação inicial, é importante uma maior ligação
entre as escolas de formação e os Agrupamentos. Quer na formação inicial, como
contínua, deve ser desenvolvido o sentido crítico dos docentes, para que possam
ser mais do que meros executores.
Por fim,
falta também uma monitorização, com caráter pedagógico e não punitivo, junto
das escolas, bem como se torna necessário avaliar este processo em termos mais
macro, não apenas centrado no que fazem os professores, mas que integre também
a análise de projetos e boas práticas nas escolas, para poderem ser replicados.
Os resultados e os produtos de todo este processo, devem ser avaliados, para se
conhecer o que resulta concretamente desta nova legislação.
Jorge
Humberto Nogueira
Professor de
Educação Especial
*Texto baseado na segunda sessão das Jornadas de Educação do Bloco de Esquerda, “Desafios da Escola Pública”, a 10 de abril, com o tema “Escola inclusiva: o que é e o que poderia ser”, com a participação dos especialistas José Morgado e Joaquim Colôa.
Link da
sessão: https://www.youtube.com/watch?v=a5_Nc-5KrlI&ab_channel=EsquerdaNet
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