Há mais de 30 anos, como profissional de educação, sei bem que as mudanças para uma Educação mais inclusiva são difíceis, acontecem num processo de trabalho constante e nunca estão acabadas. Estou ciente de quanto caminho ainda há para percorrer, mas nunca ignoro o trajeto já feito e que não pode ser subestimado. Nesta reflexão, à luz da recente legislação que pretende decretar um Regime de Educação Inclusiva, centro-me em duas premissas básicas: a primeira, que nos diz não ser possível promover a Inclusão sem a generalizar às diversas dimensões educativas e a segunda, que sublinha que todos os professores são professores de Inclusão.
Há quem queria fazer crer que a transformação da escola
portuguesa num sistema mais inclusivo, se decreta em legislação específica
setorial, desenquadrada dos principais referenciais legislativos portugueses.
Nesta linha de pensamento, bastaria decretar a Educação Inclusiva, numa lei
sobre Necessidades Educativas Especiais e, de repente, temos a Inclusão no
sistema de ensino. É difícil seguir um raciocínio, que considera exequível
implementar a Educação Inclusiva sem que esse conceito esteja expresso em mais
nenhuma lei, decreto, despacho, regulamento, ou documento, para a generalidade
do sistema educativo. É mesmo, muito difícil, acompanhar a ideia de que se pode
guiar o nosso sistema no caminho da Inclusão, sem uma reforma na organização
escolar, na formação de professores, nas práticas pedagógicas, nos recursos, nos
currículos, na avaliação e no quadro legislativo de referência. Com o nova Lei
ficamos assim, numa posição em que a Inclusão é excluída porque se circunscreve.
Esta mesma linha, vai cruzar-se com outra, ainda mais
estranha, que considera ser possível criar-se a figura de professores de
Inclusão, através do fim e reciclagem dos docentes de Educação Especial, que, transformados
em professores de Inclusão, iriam disseminar a Educação Inclusiva no sistema, por
decreto, embora sem que nenhum outro professor fosse considerado professor de
Inclusão. Esta ideia, semeada aqui e
ali, de forma a parecer uma grande ideia, acaba por ter tantos problemas, que
só pode causar grande perplexidade. Desde logo atentando contra estes docentes
e ignorando a especificidade de um corpo de conhecimento próprio de um grupo
disciplinar legalmente constituído e insubstituível. Por outro lado, ignora o
percurso e o contributo único e inestimável que estes profissionais tiveram e
têm, nos avanços que Portugal apresenta na Inclusão dos alunos com NEE. Por
fim, vai ter como resultado negar às escolas e aos pais, respostas especializadas
que se devem constituir como alternativa à institucionalização e a uma ação de
base clínica ou terapêutica, através da criação de processos de equidade, de contextos
inclusivos e pela remoção de barreiras na escola, para os alunos que precisam
de Educação Especial. O objetivo da Educação Especial é a Inclusão dos alunos
com NEE e sempre foi. Portugal é um país onde ambos se desenvolveram juntos e
nunca fará sentido pensar num sem o outro. Mas uma Escola Inclusiva é muito
mais que isto, terá de ser também esse o objetivo e a prática, de todos os
professores. Mas mais uma vez, sob o pretexto de uma suposta melhoria na
inclusão, esta mantém-se à margem do restante corpo docente.
Descuidar estes dois aspetos representa aquilo que, em nome
da inclusão, se pode destruir e mistificar num país e num sistema, a necessitar
tanto de se modernizar e qualificar. Leva-nos a questionar se há mesmo vontade
de seguir esse caminho. A escola precisa de assumir a Inclusão de forma generalizada
e estrutural e não como uma disciplina, uma medida de apoio ou um grupo
profissional. A construção de uma
Educação Inclusiva, não é uma alínea num Plano de combate ao insucesso, mas sim
o valor que deve nortear todo o Plano. Um valor expresso e intencional, que nunca
resultará se for imposto de cima, mas sim quando contamina todas as dimensões
do sistema e o transforma qualitativamente, ao mesmo tempo que se perfila no
combate contra a exclusão, o preconceito e a desigualdade. É a construção de
uma escola onde todos sentem que pertencem, que são aceites e valorizados.
Não nos podemos deixar adormecer, ou contentar porque me
Portugal há uma lei que se autointitula Regime Jurídico da Educação Inclusiva,
sem deixar bem claro que se trata de um equívoco, mais ou menos intencional,
para nos levar a crer que algo muda, para que afinal, tudo continue na mesma em
todo o sistema.
Uma Educação Inclusiva não é mascarar uma lei de Educação
Especial e passar a ideia que agora é dar o mesmo a todos, diluindo o aluno na
multidão e acabando com conceitos e designações instituídas histórica e
cientificamente. É, antes de mais, educar cada um na sua individualidade e
saber acolher bem cada aluno. Para além disso, não se deve circunscrever a um
setor específico apenas quando alguns alunos apresentam dificuldades de
aprendizagem, nem tão pouco se caracteriza por um conjunto, mais, ou menos,
organizado de medidas remediativas e vagos modelos. A Escola Inclusiva é um
todo, é uma escola que acolhe e olha por todos e cada um e abraça a
diversidade, criando mecanismos e ações concretas de equidade explícitos e
planificados, de forma a serem medíveis e otimizados.
A Inclusão não é um processo retórico, é uma transformação
real das práticas e da organização da escola e a sua implementação mede-se pela
forma como é vivida em cada dia para todos os alunos. Espera-se que, desta
forma, venha a ter especial impacto nos que estão em desvantagem, pois terá de
ser uma escola com equidade, respeito pelos direitos humanos e democrática. Não
só para os alunos com deficiência e/ou com Necessidades Educativas Especiais,
que apresentam insucesso e risco de exclusão e que podem ou não necessitar de
Educação Especial; mas também para os alunos com famílias desfavorecidas do
ponto de vista socioeconómico, que os colocam como tendo maior risco de
insucesso e de não conseguir desenvolver o seu potencial; os alunos imigrantes de
diferentes gerações, refugiados, alunos LGBTQI, alunos abusados, vítimas de
violência familiar, bullying, em risco social, de etnias, minorias religiosas, culturais
… ou até, aqueles a quem a escola falhou. A resposta não é a Inclusão tipo A, e
a tipo B, mas sim, a Inclusão tipo ponto final.
Esta escola que queremos construir todos os dias, será
seguramente uma escola melhor para todos, com valores, numa sociedade a
precisar de tolerância, solidariedade e justiça. As intervenções educativas mostram
ser mais eficazes quando são abrangentes, nomeadamente nos contextos naturais
onde se desenvolvem interações positivas com os pares, se melhora a perceção
sobre os alunos, a perceção que o próprio tem sobre a forma como os outros o
veem, bem como a formação de amizades e relações sociais mais duradouras. Não
basta estar lá fisicamente e também não basta ensinar conteúdos e competências,
a escola tem de promover e planificar intencionalmente contextos ricos em
interação social e cultural, quer na aprendizagem, quer na vida escolar, bem
como nas relações e vivências pessoais e grupais.
Uma das chaves essenciais neste caminho é termos um sistema
que se assuma como inclusivo e se organize como tal em todas as dimensões. Um
sistema que assuma a Inclusão como um valor estruturante e se reconstrua a
partir dos seus valores em cada setor, em cada ação, em cada decisão, em cada
documento, em cada prática. Dos currículos à avaliação, da organização das
escolas à sua gestão, das leis às orientações, das ações à prática pedagógica,
sem esquecer os recursos e a afetação dos mesmos. Nada acontece se o sistema
não se reforma com base em valores assumidos e não cria condições para a
mudança. Não se pode pedir aos professores atitudes e culturas inclusivas, se o
próprio sistema não se assume dessa forma, mantendo contradições e
mistificações, onde coexiste isto e o seu contrário.
A outra chave é estabelecer que todos os professores são
professores de Educação Inclusiva e estão preparados para ensinar todos os seus
alunos. Uma prática inclusiva é transversal e reflete-se nas metodologias de
ensino, na gestão de sala de aula, na avaliação, numa ação de cooperação entre
professores e entre os alunos, bem como no apoio, não só aos alunos, mas também
aos professores, nomeadamente no investimento, nos recursos e na criação de
condições de trabalho para inovar, experimentar e criar.
Quer estejamos a falar num professor de História, de
Matemática, de Educação Especial ou de Educação Física, pensar que se pode
promover a Inclusão sem formar docentes para tal, já é uma ideia derrotada à
partida.
Duvidamos do que está a ser feito em termos de investimento
na formação inicial e contínua para a generalidade dos professores em relação à
Educação inclusiva, mas temos a convicção de que as reforma educativas globais necessárias
para a Inclusão e a formação dos docentes com esse fim, não avançam uma sem a
outra.
Quem quer assumir esta construção, deve questionar-se sobre
se realmente a quer fazer, ou se prefere laborar em cima de reciclagens. Deve
ouvir as escolas e saber o que estão preparadas para fazer e se realmente o querem
fazer e como. Deve estar preparado para repensar a escola a partir de valores e
direitos essenciais e de que forma isso se vai disseminar em passos seguros e
contaminar todo o sistema educativo de forma coerente, muito especialmente a
começar pelas próprias estruturas centrais.
Por fim, deve fazer-se bem as contas. Porque uma Educação Inclusiva requer a revisão de prioridades nos investimentos e nós não podemos andar constantemente a apregoar a inclusão e pensar que este caminho se implementa a custo zero, forçando mudanças apenas naquilo que é barato, mas mitigando-as quando não interessa.
Jorge Humberto Nogueira
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Este texto constitui o capítulo do livro "Desconfinar", Coordenação de Joaquim Côloa em março/abril 2021, disponível enline neste link: https://drive.google.com/file/d/1Kx2jh6FwqZnACELQbus1TQFqDgHXb4eK/view
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