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terça-feira, 16 de junho de 2020

Enxovalho Público da Sincronia Privada


Hoje acompanhei algumas notícias e relatos de professores, quer na imprensa, quer nas escolas, sobre os problemas de proteção da privacidade dos próprios professores em relação a aulas síncronas. Está a verificar-se um uso indevido e uma intervenção abusiva nas sessões, quer em temos de divulgação, quer em termos de intervenção dos presentes em casa nas sessões, interpelando o professor, criticando, dando opiniões. Os relatos sucedem-se, e, embora queiramos acreditar que se tratam de situações minoritárias, todos estamos a ver o potencial de descalabro.

Sem preparação, sem sistemas seguros, sem formação e sem apoio da própria tutela, os professores atuam com voluntarismo e recursos próprios, da forma que sabem e podem, tentando resolver um problema criado, para o qual são chamados a solucionar, para colmatar as graves carências de preparação e planificação do Ministério. Da tutela as orientações são obrigar os professores a desenvolver aulas síncronas, com presenças obrigatórias, horas marcadas, marcação de faltas e portanto, é para se fazer e é obrigatório para as partes. Não está claro que o uso de câmaras seja facultativo, pois o professor tem de registar as presenças dos alunos e garantir que lá estejam, pois são obrigatórias.

   Estamos a criar uma situação que pode ser insustentável brevemente, pois não interessa em que condições, com que proteção, com que preparação estas aulas síncronas decorrem. Numa primeira fase começaram a surgir os problemas de privacidade dos alunos e das suas famílias. São então discutidas em cima do joelho as condições e formas de minimizar esse problema, ou desligando câmaras ou os pais autorizando expressamente. Isto já basta para uma bola de neve de problemas começar a formar-se. Mas agora emerge outro problema grave que é a privacidade das próprias aulas e do próprio ato de ensinar. As aulas passaram a ser praticamente públicas, pois nada garante a sua não difusão, total parcial, ou de informações, dado que cada uma pode ser assistida em família e, por vezes, por quem as quer ver ou ouvir, bastando estar perto do aluno. Já li artigos de cronistas e colunistas e comentadores, que usam informações ouvidas e vistas em aulas, para criticar professores, aulas, posturas e valores. 

Não tarda muito para as aulas passarem a estar na praça publica, na chacota, no comentário, nos telejornais, nos debates e nas tertúlias humorísticas. Até a telescola está a ser alvo de críticas e artigos de opinião sobre afirmações de professores. Toda a gente agora percebe de educação e escrutina aulas.
Estou a ficar deveras preocupado com este enxovalho dos professores que se avizinha. Começam por ser voluntaristas, para safar a cara do Ministério e acabam enxovalhados na praça pública, onde se debatem casos e se generalizam episódios. E não falo só nos ataques às aulas que já foram publicitados e correm o risco de se repetir, falo de todo um manancial de uso desta informação que é PRIVADA por pessoas fora deste contexto e sem qualquer legitimidade para aceder ou usar essa informação, quer sejam alunos, pais ou outros. É uma vergonha que se propaguem, façam notícias e comentários com base em informação de uma relação privada de um professor com os seus alunos, supostamente numa sala de aula.

Uma aula, é um local de liberdade, de diálogo, de relação, onde professores e alunos se expõem, arriscam e criam juntos. Estão à vontade para um diálogo aberto, franco e espontâneo. Esta relação é sagrada e não deveria ser violada. Uma aula não é um professor a ler um texto e a transmitir diretrizes aos seus alunos, sem espaço para mais nada. Os professores estão habituados a estar despreocupadamente com os seus alunos, estabelecendo uma relação pedagógica de liberdade. Por isso sempre foi proibido filmar aulas, ou gravar. Porque para além de crime, é a invasão de um espaço privado, onde os pais confiam os seus filhos e o professor se abre aos alunos. Haverá sempre frases infelizes, incorreções, problemas de comunicação, reprimendas, palavras desnecessárias, mas isso faz parte do diálogo de uma aula e do contrato de espontaneidade e aprendizagem mútua de uma relação pedagógica. 

É um processo dinâmico de construção e criação numa relação franca em que as partes se compreendem e se ajustam num contexto comum. Pegar numa situação destas e fazer dela uma emissão em direto para gáudio de pessoas sem princípios e que violam a própria lei, usando e descontextualizando as aulas síncronas, para aparecerem como moralizadores e pedagogos de bancada, é um problema muito grave. Uma bola de neve está neste momento a formar-se, que vai ter de ser encarada de frente e que deveria estar a preocupar todos os responsáveis. É uma vergonha o que está a acontecer. Não é só o desrespeito pelos professores, é, também, uma forma torpe de banalizar a educação, diminuir a escola, desautorizar e agredir o próprio sistema educativo. Que consequências haverá para o futuro? Seguramente nada de bom. A escola aparece como exposta ao ridículo, fragilizada, alvo de chacota, tola e fraca. É um processo destrutivo este que vivemos.

Por isso, eu começo a achar interessante a ideia de acabar com o público de bancada nas sincronias, num trabalho que é sério, é responsável e deve ser um valor da nossa democracia. Enquanto ninguém age, estudem formas de se protegerem. Para começar, evitem as câmaras, escrevam o que dizem, não dialoguem livremente. Gravem apresentações de matéria em Power Point a partir de um guião escrito e passem-nas. Respondam por escrito. Mandem tarefas e recebam-nas em plataformas seguras e façam a sua correção por escrito. Não improvisem, não criem, não sejam espontâneos. Parem de se expor com voluntarismo para vossa proteção e proteção da dignidade da escola que somos e queremos após a pandemia. Porque se não formos nós, pelos vistos mais ninguém o fará.
E para aqueles que usam informações retiradas de aulas síncronas, um pedido meu: filmem-se no vosso trabalho. Gravem-se na vossa profissão. Disponibilizem essas gravações para nós podermos analisar e para aferirmos a vossa autoridade moral. Estar no lugar dos outros é uma m..., não é?

Publicado originalmente no meu Facebook a 20 de abril durante período de quarentena.

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