Nos últimos anos tem ganho relevância a educação desde o primeiro ano de vida como fundamental para o desenvolvimento das crianças, sendo a creche uma plataforma essencial. Apesar do crescimento da natalidade e do aumento de procura de respostas para a primeira infância, ficou esquecido um dos pilares do sistema: a Intervenção Precoce na Infância, IPI, a parente pobre do sistema.
Está há muito estabelecido que a intervenção o mais precoce possível, no caso de risco de desenvolvimento ou perturbações estabelecidas, tem resultados mais efetivos devido às características plásticas do sistema nervoso central e ao intervalo temporal adequado de crescimento. É a idade onde se tem de apostar mais na intervenção e onde ela faz toda a diferença, mas por outro lado é também a idade em que a ausência de uma intervenção de qualidade, pode tornar irreversíveis as alterações verificadas.
Não se pode promover a inclusão e a equidade na primeira infância, sem desenvolver um serviço de Intervenção Precoce com qualidade, universal no acesso e com recursos suficientes para as necessidades do país. Urge repensar o funcionamento e o investimento nas 155 Equipas Locais de Intervenção Precoce, ELI, com enormes carências de recursos multidisciplinares, de meios, de articulação entre entidades diversas e com grandes listas de espera. Muitas destas equipas acabam por apoiar mais alunos do que o seu financiamento prevê, com as consequências óbvias na qualidade e capacidade de resposta. A própria IPI assinalava em 2023 mais de 3500 crianças em espera.
Este conjunto de serviços é da responsabilidade dos Ministérios da Saúde, Segurança Social e Educação, gerindo 1664 profissionais das diferentes áreas, no apoio às famílias, às crianças e às creches e jardins de infância, nomeadamente quase 28 mil crianças, segundo dados de 2023.
Ainda de acordo com os relatórios anuais deste serviço, desde 2020 o número de crianças atendidas tem aumentado cerca de 2 mil por ano. Em contraste, as horas de trabalho efetivo das equipas e o número de profissionais têm diminuído, mantendo-se em números abaixo de 2019. Só entre 2022 e 2023 o número de profissionais diminuiu em 29, para além de haver muitos a tempo parcial ou sem estabilidade e sem garantia de continuidade na intervenção.
A par de carências de recursos humanos, especialmente terapêuticos e das assimetrias regionais, existem divergências quanto ao modelo a seguir pela IPI, bem como dificuldades de representatividade e articulação entre as entidades dos 3 Ministérios envolvidos, sendo imperiosa uma avaliação independente da sua eficácia, que alavanque e qualifique o serviço.
Mayday Mayday
Quando da criação do SNIPI, o professor Bairrão Ruivo, um dos maiores investigadores e impulsionadores da IP em Portugal, alertava, num famoso artigo intitulado “Mayday, Mayday”, para o perigo da alteração do paradigma de funcionamento e o recuo do Ministério da Educação, ME, na criação do SNIPI, dado que, a Intervenção Precoce deve ser uma abordagem multidisciplinar em Educação Especial, com relevo para os profissionais da educação especializados, os docentes de Educação Especial, de acordo com os melhores critérios internacionais.
Este docente da Universidade do Porto, já previa muitos dos problemas que hoje se verificam, devido ao modelo adotado e a uma secundarização do ME, retirando o foco da intervenção da esfera educacional, abrindo a opções de cariz mais terapêutico. Resultam diversas formas de funcionamento pelo país, desarticulação entre serviços e uma diminuição de apoio aos Jardins de Infância da rede pública, onde milhares de crianças e profissionais da educação não têm o acompanhamento multidisciplinar devido, porque devido à falta de recursos se priorizam os domicílios, as idades mais baixas e as instituições do setor social, cooperativo e privado.
Hoje, com o enorme aumento do número de horas de permanência das crianças em instituições da primeira infância como as creches e os jardins, a IP deveria estar no centro das preocupações dos envolvidos. De acordo com os especialistas, deve-se considerar a creche até aos 3 anos como serviço educacional, como no pré-escolar e não apenas social e assistencial, dada a importância de uma educação adequada de qualidade nestas idades. Daí ser natural que se enquadre a IPI nessa desejável restruturação, retomando o papel do MECI, desde logo com a alteração da Lei de Bases do Sistema Educativo, cuja revisão está anunciada, mas cujas propostas se desconhecem.
Também a situação dos técnicos e terapeutas, não está acautelada em termos de estabilidade, exclusividade e remuneração, sendo mais atrativo o setor privado. Os professores e educadores especializados, representando a Educação, são selecionados para as equipas através de um sistema difuso de destacamento, sem concurso e sem grupo disciplinar, que garanta as qualificações e o perfil necessário, bem como a justiça no acesso.
Urge olhar para os investimentos nesta área com mais seriedade, promovendo um serviço de Intervenção Precoce multidisciplinar de cariz educacional, centrado no apoio às famílias, às crianças dos 0 aos 6 e também aos profissionais da educação, com efetiva capacidade de responder universalmente, com qualidade e igualdade.
Doutro modo corremos o risco de ficar com uma resposta pública de serviços mínimos para apoio das crianças mais vulneráveis, enquanto as famílias de mais recursos acedem a privados com o Estado a transferir ainda mais recursos, por incapacidade ou demissão das suas obrigações numa área tão sensível.