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domingo, 6 de julho de 2025

A Equidade é o Verdadeiro Ranking das Escolas

 

A escola pública tem um papel estruturante no desenvolvimento humano e na promoção de uma sociedade verdadeiramente livre e democrática. É uma ferramenta de equidade que deve elevar ao máximo cada potencial, sem a qual se perpetuam desvantagens e se cria um sistema dual de classe. O seu impacto na progressão de cada jovem é a verdadeira medida do sucesso e não um ranking que compara o incomparável para destruir uma conquista fundamental aumentando a transferência de verbas do Estado.

Uma escola de qualidade proporciona experiências e vivências para que os jovens se desenvolvam de forma holística com valores democráticos e capacidades cognitivas complexas como o pensamento crítico e de criatividade, atingindo o máximo do seu potencial e os seus objetivos de vida.

Sem isso, o crescimento emocional e a dimensão biológica de construção do ser humano são postos em causa, pela carência de um investimento pedagógico atempado e competente, bem como de relações sociais de qualidade.

Não ter um ensino com equidade vai perpetuar uma desvantagem social, económica e pessoal pré-existente, que falseia o tal “mérito” que tanto se apregoa.  Por isso a equidade é o conceito chave para combater as desigualdades e garantir igualdade de direitos e oportunidades.

É sabido que as habilitações e condições socioeconómicas das famílias são determinantes no sucesso e no próprio desenvolvimento pessoal, intelectual e neurológico, nomeadamente pela dificuldade de aceder a experiências, vivências e relações de qualidade desde os primeiros anos de vida

Esta construção emocional e cognitiva necessita também de uma aprendizagem ativa num ambiente pedagógico rico onde se privilegia o conhecimento científico, bem como o debate, a autonomia, o desafio e o sabor da conquista do coletivo.

A escola desde o primeiro ano de vida, com finalidade educativa e de desenvolvimento do ser humano em todas as dimensões, tem especial relevância como fator de equidade contra a perpetuação da desigualdade que cada um já transporta.

A Escola Pública é fator de equidade e combate as desigualdades

A escola pública tem de ser transformadora e inconformada porque quando falha como fator de equidade, hipoteca o futuro dos mais vulneráveis, que não podem aceder a recursos educativos complementares, explicações e atividades externas, que as famílias com mais capacidade económica podem proporcionar.

Não é apenas um serviço público a par dos restantes, mas sim um grande motor de transformação, que, quando atacado, dividido ou empobrecido, falha aos mais desfavorecidos e aos próprios direitos humanos.

Por tudo isto não se pode monitorizar o sistema sem primeiro garantir a igualdade de oportunidades, sem a qual não há avaliação que seja séria.

Lutar por uma Escola Pública universal de qualidade é uma conquista de Abril e uma luta civilizacional pela plenitude de cada ser humano, pela justiça social e por um futuro em liberdade.

 

A mentira dos rankings não promove a melhoria do sistema

Os rankings fazem parte desta mentira de que se pode comparar o incomparável. Através das notas, não se podem comparar escolas com número diferente de alunos, com diferenças socioeconómicas e de escolaridade das famílias.

Uma coisa é trabalhar para notas e fazer bonito num exame e outra coisa, bem mais necessária, é ensinar, desenvolver e promover cada aluno. Muitas vezes ao centrarmo-nos na primeira, pomos em causa a segunda e às tantas estamos a inflacionar notas em busca dos resultados numéricos vantajosos para objetivos menos claros.

É desonesto comparar as escolas que selecionam alunos pelo desempenho e pelas possibilidades económicas de pagar mensalidades elevadas, com as escolas públicas onde está toda a população, nomeadamente os mais pobres, com ação social escolar, com mais desvantagem sociofamiliar, imigrantes que não dominam a língua portuguesa, repetentes, alunos com absentismo elevado, com dificuldades de aprendizagem, com necessidades educativas diversas, com deficiência, vítimas, com necessidade de apoio e de medidas equidade e até com carências básicas alimentares, de assistência médica ou psicológica.

São muitos os fatores que contribuem para o sucesso dos alunos, existindo dimensões não avaliadas como a gestão escolar, os progressos de cada Agrupamento na resposta dada, a melhoria face à avaliação interna e externa periódica, os contextos onde a escola se insere, o trabalho realizado pela comunidade, a realidade dos alunos migrantes, ou até o peso das explicações nos resultados dos exames, por exemplo.

Deveriam ser escolhidas amostras equivalentes, acautelando as variáveis que pautam as diferenças. O esforço que as escolas públicas fazem não tem comparação e a evolução e progresso dos seus alunos mostra a sua verdadeira qualidade.

Se pegarmos numa escola privada e compararmos com uma amostra equivalente do público, é claro que o resultado seria bem diferente, mas isso não serve ao propósito de atacar o setor público, num dos países da Europa onde o setor privado já tem o maior peso e o maior na primeira infância.

Esta promoção gratuita ao ensino privado esconde realidades difíceis e complexas das escolas em contextos desfavorecidos que não excluem e se mobilizam para atender todos sem exceção, com enorme esforço da comunidade educativa, nomeadamente dos professores. Escolas que não desistem de desenvolver ao máximo o potencial e os objetivos dos alunos, apesar dos investimentos em Educação não irem ao encontro das suas verdadeiras necessidades.

Há melhores formas de analisar esta realidade e contribuir para a sua monitorização e melhoria da qualidade educativa, nomeadamente através da comparação dos valores esperados para cada contexto e os valores que acabam por se revelar, ou quando se valoriza o percurso de cada aluno na escolaridade obrigatória e depois no percurso universitário. No fundo, ter em conta o ponto de partida e de chegada e a grande variedade de fatores implicados.

Juntam-se ainda os arautos do comentário mediático, culpando as greves e as faltas dos docentes, quando é óbvio que o problema da falta de professores tem a ver com a forma como os professores têm sido tratados, o abandono dos jovens que escolhem outro futuro, o envelhecimento dos quadros e obviamente a má gestão de décadas que levou à saída de muitos profissionais.

O sistema público e o sistema privado podem coexistir, mas com respeito pelas especificidades e público alvo de cada um, não numa perspetiva de antagonismo, que sabemos ser artificial, usando números que não espelham a realidade, nem contribuem para uma intervenção adequada e construtiva.

Ao Estado cabe garantir a Constituição através de um ensino de qualidade universal e gratuito para todos e todas e é nessa construção que devem centrar-se os investimentos. O ensino privado tem toda a liberdade de se implementar e fazer negócio, mas não à custa de dinheiro público, que parece ser o objetivo último dos rankings e de tantas manobras a que temos assistido.

 

Jorge Humberto Nogueira

Artigo originalmente publicado em Esquerda.Net 24 abril 2025

https://www.esquerda.net/opiniao/equidade-e-o-verdadeiro-ranking-das-escolas/94543


Educação Inclusiva: O caminho de uma escola de qualidade, justa e democrática.

 


Desde os anos 70 se defende a igualdade de direito à educação para todos e a transformação da escola como forma de responder à universalidade de acesso e de sucesso. A ideia de aprender juntos com respostas adequadas, obriga a mudanças nas atitudes e nas práticas pedagógicas, bem como na organização, gestão, financiamento, recursos, formação dos docentes, nos currículos e, especialmente, na compreensão de que as barreiras estão na sociedade e não na pessoa, rejeitando respostas paralelas ou artificiais, face ao contexto natural onde a aprendizagem e o desenvolvimento devem ocorrer.

As conquistas do 25 de Abril de 1974, permitiram uma transformação na forma de olhar e educar as pessoas com deficiência, que até então estavam excluídas ou beneficiavam de alguns projetos pontuais ligados a Associações, passando a desenvolver-se uma política de igualdade de direitos, com uma massificação de respostas, quer em cooperativas de pais, quer na integração no ensino regular.

O Estado assumia a educação de todos sem exceção, através da Constituição Portuguesa de 1976 e a Lei de Bases do Sistema Educativo de 1986, introduzindo o conceito de escola para todos, que permitiu a integração progressiva no ensino público dos alunos com Necessidades Educativas Especiais.

Finalmente em 1991, foi publicada a primeira legislação específica, o Decreto-Lei 319, que responsabilizava a escola e todos os professores, pela educação destes alunos, apontando práticas pedagógicas diferenciadas e a implementação de medidas de apoio para responder às diferenças. Em 1997 o Despacho Conjunto 105º, veio reforçar este caminho, criando localmente Equipas de Coordenação dos Apoios Educativos (ECAE), procurando integrar todas as respostas, coordenar a atuação dos professores e aprofundar a diferenciação curricular.

Em 2018 o Decreto-Lei n.º 3 revogou os anteriores, aprofundando o conceito de Educação Inclusiva e a sua implementação através de medidas específicas, mas destinadas à Educação Especial, isto é, a uma população específica. Esta dicotomia, a par da classificação de alunos como forma de acesso às medidas e a criação de processos burocráticos complexos, criaram contradições com o próprio conceito de inclusão. Há um desvio do caminho anterior de unificação e articulação de respostas, criando uma lei de Educação Especial com o propósito de incluir os “seus” alunos.

A desejada “contaminação” daquilo que vinha sendo implementado no “Especial”, nunca foi bem conseguida, dado que isso representaria mudanças muito mais profundas no sistema, na formação de professores e no reforço financeiro, que nunca se resolveram. Estas continuam a ser as barreiras principais à concretização de uma escola onde todos possam aprender juntos.

Temos finalmente o atual Decreto-Lei nº 54/2018, que pretendeu decretar um regime de Educação Inclusiva, sem resolver as barreiras anteriores, nem encontrar soluções substancialmente diferentes. Usa uma retórica inclusiva, mas na prática não generaliza a inclusão a toda a escola, propondo essencialmente uma mudança circunscrita à forma como atender alunos com Necessidades Específicas, quando o resto falha. Persistem ainda outros problemas como a forma de olhar a participação e autodeterminação, bem como os aspetos da progressão e certificação, nunca clarificados.

Apesar deste caminho ter uma evolução assinalável e representar um esforço nacional, há condições essenciais que nunca mudaram realmente e que se mantêm como barreiras, nomeadamente a dificuldade de operar mudanças numa organização e gestão escolar que se quer democrática, na diferenciação curricular e das práticas; na falta de recursos e de equipas, assistentes e professores especializados e na dificuldade de ter um olhar integrado de um sistema onde todos os professores são de inclusão.

A linguagem tornou-se ainda mais estigmatizante, como “os alunos da educação inclusiva” e veio legitimar a invisibilidade de necessidades e práticas incorretas, ou manter as anteriores com uma linguagem criativa. Aprofundou um sistema burocrático labiríntico e interpretações díspares por todo o país, que denotam assimetrias e desorganização. São ainda criadas estruturas paralelas artificiais, desconectadas da organização natural escolar, que os Agrupamento nunca conseguiram resolver. Isto revela que, para além das barreiras principais se manterem, a própria legislação tornou-se numa barreira, mudando algo, para que tudo fique na mesma.

O conceito de inclusão é hoje transversal na sociedade, mas cabe à escola um papel fundamental na sua defesa e implementação, não só para os alunos com deficiência, mas para todos os que apresentam insucesso ou risco de exclusão como os jovens desfavorecidos, imigrantes, refugiados, LGBTQI, com problemas de saúde, vítimas de violência familiar ou bulliyng, de etnias, minorias religiosas e culturais ou aqueles a quem a escola falhou.

É essencial uma nova arquitetura legislativa a partir da avaliação independente dos investimentos e da aplicação da atual legislação, no sentido de aferir se realmente estamos a cumprir os objetivos e a contribuir para melhorar a inclusão num sistema educativo mais equitativo e qualificado em todo o país.

Temos de reforçar o caminho de uma escola pública que recusa a reprodução das desigualdades, das quais não conseguiu libertar-se, apesar da democratização e da igualdade de oportunidades que defende. A inclusão social começa a ser construída pela Educação Inclusiva, que é afinal uma educação de qualidade, libertadora, numa escola democrática que promove a justiça.

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Jorge Humberto Nogueira

Professor de Educação Especial e Dirigente Sindical

Mestre em Educação Especial, investigador, autor e formador na área da Inclusão.

Artigo originalmente publicado na Revista do SPGL "Escola Informação", n.º311, pgs. 28 e 29.

https://www.spgl.pt/Media/Default/Info/81000/800/60/8/EI%20%20311.pdf



segunda-feira, 14 de abril de 2025

A Paz constrói-se na vivência de uma escola inclusiva

Educar para a Paz requer uma vivência escolar que promova a inclusão, a resolução pacífica dos problemas e uma vivência harmoniosa de respeito e aceitação. É fundamental que as escolas tenham um ambiente de respeito, onde todos se sintam aceites como parte da comunidade educativa.

Para tal é necessário que estes valores estejam expressos nos documentos orientadores construídos em conjunto, assumidos e vividos diariamente nas decisões, nas ações e na prática pedagógica.

Uma escola verdadeiramente inclusiva é uma escola democrática, onde existe um coletivo que é ouvido numa verdadeira partilha de poder e participação efetiva de todos. Não se educa para a paz numa escola organizada de cima para baixo, onde a comunidade não se sinta parte integrante e que alimente a segregação e o autoritarismo.

A multiculturalidade e a diversidade crescentes no sistema são um desafio para a escola inclusiva que tem de se organizar para aceitar as diferenças e promover a empatia e uma gestão assertiva do medo ou do ódio.  Daí a importância de saber acolher e apoiar toda a população, independentemente da sua cultura de origem, língua, contexto socioeconómico, religião, necessidades específicas, identidade ou diferentes formas de vulnerabilidade.  

Trata-se de uma questão de Direitos Humanos, quer no acesso à educação e convivência em harmonia, quer também no respeito pela diversidade e igualdade de direitos, combatendo discriminação e as injustiças.

Devemos deixar claro que a Paz se constrói através de uma escola que valoriza e cuida das diferenças e as trata com equidade, pautando-se pela promoção de igualdade de direitos e oportunidades. Uma educação que promove a pedagogia ativa, a autonomia e o sentido crítico, levando os alunos ao questionamento e à descoberta do mundo através da riqueza de um coletivo diverso, com projetos e formas de aprendizagem cooperativa e solidária, onde se reconheça o contributo de cada indivíduo sem exceções.


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Imagem: SPGL/FENPROF
Artigo originalmente publicado na revista "Escola Informação" do Sindicato de Professores da Grande Lisboa, nº 45 de março 2025 em:
https://www.spgl.pt/escola-informacao-digital-no-45



sábado, 2 de novembro de 2024

Quem acode à Intervenção Precoce

Nos últimos anos tem ganho relevância a educação desde o primeiro ano de vida como fundamental para o desenvolvimento das crianças, sendo a creche uma plataforma essencial. Apesar do crescimento da natalidade e do aumento de procura de respostas para a primeira infância, ficou esquecido um dos pilares do sistema: a Intervenção Precoce na Infância, IPI, a parente pobre do sistema.

Com um programa de creches gratuitas que procura a universalidade e igualdade de acesso, teria sido natural que também se dimensionasse a IPI a esta demanda, mas tal não aconteceu, pelo contrário, este serviço, já com enormes carências, passou a sofrer mais pressão e a não acompanhar as necessidades.
O Sistema Nacional de Intervenção Precoce, SNIPI, foi criada em 2006, através de um conjunto de Equipas Locais, para apoiar as crianças mais vulneráveis, dos 0 aos 5/6 anos, idade onde esse trabalho tem uma maior eficácia na promoção do desenvolvimento.

Está há muito estabelecido que a intervenção o mais precoce possível, no caso de risco de desenvolvimento ou perturbações estabelecidas, tem resultados mais efetivos devido às características plásticas do sistema nervoso central e ao intervalo temporal adequado de crescimento. É a idade onde se tem de apostar mais na intervenção e onde ela faz toda a diferença, mas por outro lado é também a idade em que a ausência de uma intervenção de qualidade, pode tornar irreversíveis as alterações verificadas.

Não se pode promover a inclusão e a equidade na primeira infância, sem desenvolver um serviço de Intervenção Precoce com qualidade, universal no acesso e com recursos suficientes para as necessidades do país.  Urge repensar o funcionamento e o investimento nas 155 Equipas Locais de Intervenção Precoce, ELI, com enormes carências de recursos multidisciplinares, de meios, de articulação entre entidades diversas e com grandes listas de espera. Muitas destas equipas acabam por apoiar mais alunos do que o seu financiamento prevê, com as consequências óbvias na qualidade e capacidade de resposta. A própria IPI assinalava em 2023 mais de 3500 crianças em espera.

Este conjunto de serviços é da responsabilidade dos Ministérios da Saúde, Segurança Social e Educação, gerindo 1664 profissionais das diferentes áreas, no apoio às famílias, às crianças e às creches e jardins de infância, nomeadamente quase 28 mil crianças, segundo dados de 2023.

Ainda de acordo com os relatórios anuais deste serviço, desde 2020 o número de crianças atendidas tem aumentado cerca de 2 mil por ano. Em contraste, as horas de trabalho efetivo das equipas e o número de profissionais têm diminuído, mantendo-se em números abaixo de 2019. Só entre 2022 e 2023 o número de profissionais diminuiu em 29, para além de haver muitos a tempo parcial ou sem estabilidade e sem garantia de continuidade na intervenção.

A par de carências de recursos humanos, especialmente terapêuticos e das assimetrias regionais, existem divergências quanto ao modelo a seguir pela IPI, bem como dificuldades de representatividade e articulação entre as entidades dos 3 Ministérios envolvidos, sendo imperiosa uma avaliação independente da sua eficácia, que alavanque e qualifique o serviço.

Mayday Mayday

Quando da criação do SNIPI, o professor Bairrão Ruivo, um dos maiores investigadores e impulsionadores da IP em Portugal, alertava, num famoso artigo intitulado “Mayday, Mayday”, para o perigo da alteração do paradigma de funcionamento e o recuo do Ministério da Educação, ME, na criação do SNIPI, dado que, a Intervenção Precoce deve ser uma abordagem multidisciplinar em Educação Especial, com relevo para os profissionais da educação especializados, os docentes de Educação Especial, de acordo com os melhores critérios internacionais.

Este docente da Universidade do Porto, já previa muitos dos problemas que hoje se verificam, devido ao modelo adotado e a uma secundarização do ME, retirando o foco da intervenção da esfera educacional, abrindo a opções de cariz mais terapêutico. Resultam diversas formas de funcionamento pelo país, desarticulação entre serviços e uma diminuição de apoio aos Jardins de Infância da rede pública, onde milhares de crianças e profissionais da educação não têm o acompanhamento multidisciplinar devido, porque devido à falta de recursos se priorizam os domicílios, as idades mais baixas e as instituições do setor social, cooperativo e privado.

Hoje, com o enorme aumento do número de horas de permanência das crianças em instituições da primeira infância como as creches e os jardins, a IP deveria estar no centro das preocupações dos envolvidos. De acordo com os especialistas, deve-se considerar a creche até aos 3 anos como serviço educacional, como no pré-escolar e não apenas social e assistencial, dada a importância de uma educação adequada de qualidade nestas idades. Daí ser natural que se enquadre a IPI nessa desejável restruturação, retomando o papel do MECI, desde logo com a alteração da Lei de Bases do Sistema Educativo, cuja revisão está anunciada, mas cujas propostas se desconhecem.

Também a situação dos técnicos e terapeutas, não está acautelada em termos de estabilidade, exclusividade e remuneração, sendo mais atrativo o setor privado. Os professores e educadores especializados, representando a Educação, são selecionados para as equipas através de um sistema difuso de destacamento, sem concurso e sem grupo disciplinar, que garanta as qualificações e o perfil necessário, bem como a justiça no acesso.

Urge olhar para os investimentos nesta área com mais seriedade, promovendo um serviço de Intervenção Precoce multidisciplinar de cariz educacional, centrado no apoio às famílias, às crianças dos 0 aos 6 e também aos profissionais da educação, com efetiva capacidade de responder universalmente, com qualidade e igualdade.

Doutro modo corremos o risco de ficar com uma resposta pública de serviços mínimos para apoio das crianças mais vulneráveis, enquanto as famílias de mais recursos acedem a privados com o Estado a transferir ainda mais recursos, por incapacidade ou demissão das suas obrigações numa área tão sensível.

terça-feira, 20 de agosto de 2024

Programa para mais professores remenda o presente e ignora o futuro da profissão


Falta de professores resulta do desinvestimento estrutural na escola pública.

O Programa agora anunciado pelo Ministério da Educação, Ciência e Inovação, (MECI) para combater a falta de professores, intitulado “+Aulas +Sucesso”, não apresenta mecanismos para tornar a docência uma carreira atrativa ou melhorar as condições de trabalho a médio e longo prazo, deixando sérias dúvidas sobre a sua eficácia estrutural, dada a dimensão do problema.

Esta resposta, propõe medidas imediatistas pontuais, sem investir a fundo na Escola Pública no seu todo, nem na profissão em particular, deixando por resolver as questões da precariedade, dos custos de deslocação, dos bloqueios ao acesso a escalões mais altos, das injustiças e ineficácia da avaliação, das más condições de trabalho, dos abusos laborais e da aposentação tardia numa profissão de desgaste rápido.

Plano do MECI propõe remendos baratos e esforço dos professores

As propostas anunciadas pelo MECI para aumentar profissionais no sistema exigem ainda mais esforço aos professores e são pouco robustas, destinadas a apagar fogos no imediato.

Não é à toa que o Programa se chama + Aulas, pois as medidas de gestão têm a preocupação cosmética de não deixar os jovens nos pátios das escolas por períodos longos para não dar má imagem, mas criando problemas à gestão das escolas e à organização dos horários.

No reforço de recursos, aposta em investigadores, mestres e doutorados sem formação profissional, que supostamente a farão já nas escolas, o que segue a sequência anterior de profissionais não habilitados, precisamente aqueles que não quiseram seguir a via ensino.


O Plano recorre ainda a medidas que aumentam o esforço dos professores e educadores, reforçando o limite de horas extraordinárias e pretendendo que muitos adiem a reforma e alguns aposentados regressem.

Há aqui uma ironia do destino, já que foi precisamente a estes mais de 40 mil docentes reformados ou em fim de carreira, que o MECI negou reaver total ou parcialmente o tempo de serviço através de mecanismos de compensação no cálculo da aposentação, recusados em negociação. Muitos deles estão prestes a reformar-se esgotados e injustiçados, com remunerações muito abaixo das que teriam se lhes fosse dado o tempo congelado.

De acordo com as contas feitas a tudo isto, a FENPROF avança com o número possível de 3400 docentes que podem resultar deste Plano, se correr bem e houver voluntários. São menos que os reformados deste ano e muito aquém dos milhares que têm saído.

Face ao diagnóstico do problema, torna-se óbvio que este Plano apenas foca o imediato, procurando minimizar o número de alunos sem aulas, mas gastando o mínimo possível e ignorando toda a dimensão estrutural no médio e longo prazo.

Há muito onde investir na Escola Pública, irei focar-me nas três principais ideias para uma carreira mais atrativa, pois aí reside grande parte da solução de futuro para reter e atrair profissionais. Há 3 áreas, que continuarão a afastar profissionais até ao momento em que já não haverá remendos que valham.

1.     Início de carreira com apoios e justiça.  Os jovens professores saíram aos milhares porque os sucessivos Governos apostaram na precariedade, permitindo que os contratados estivessem em média 15 anos sem entrar na carreira e sem apoios à fixação ou à deslocação. Por isso o início da carreira tem de garantir uma vinculação rápida e apoios a quem se desloca e merece viver com dignidade.

2.     Melhores salários e acesso a toda a carreira. A perda de poder de compra está devidamente comprovada, sendo prioritária uma melhoria salarial. Por outro lado, não é possível atingir os escalões mais elevados, num total de 10, pelos excesso de anos de contratação e pelos travões nas vagas ao 5º e 7º, articulados com uma Avaliação de Desempenho Docente, ADD que impôs quotas de 25% nestes patamares, com reflexos muito negativos no salário e na aposentação. Estas vagas têm de acabar e a ADD tem de ser justa, igual em todo o país e ao serviço da melhoria dos profissionais e da qualidade do ensino.

3.     Horários justos e condições de trabalho. A exaustão é uma evidência, dado tratar-se de uma atividade de desgaste rápido, embora não reconhecida como tal. O aumento da idade de reforma, a par da imensa quantidade de burocracia inútil, leva à deterioração e ao desânimo, que é hoje a realidade das escolas. É urgente rever a aposentação para rejuvenescer a profissão e melhorar as condições de trabalho, respeitando os horários. Todas as tarefas têm de ser contabilizadas e não podem ser dadas a quem não tem mais tempo. Os abusos acabam por desgastar e prejudicar muito o tempo de preparação e avaliação, recaindo sobre a vida pessoal dos professores e educadores.

Abandono da profissão é fruto de má gestão de recursos

A falta de professores e educadores em Portugal é um problema estrutural previsível há mais de uma década, sem que tenha havido preocupação em resolvê-lo, pelo contrário, foram levadas a cabo diversas políticas economicistas que só agravaram a situação e contribuíram para minar o prestígio e a confiança em relação à classe.

As dificuldades e deterioração da carreira, levaram à diminuição de 30 mil profissionais, desde 2011, especialmente os mais jovens, eternamente precários e deslocados, a quem foi dito que estavam a mais e podiam emigrar.

Acresce o aumento populacional fruto da imigração, onde se regista já um aumento de 15 mil alunos no básico e secundário, contrariando as descidas nos anos anteriores. Em 2022 ultrapassamos 1 milhão e meio de alunos e a reversão do saldo de natalidade sugere que o aumento de alunos se irá manter.

Quando a idade da reforma dos professores aumentou em média 10 anos, foi adiado um problema, que acabou agora por aparecer. Só nos últimos três anos aposentaram-se mais de 10 mil profissionais: 2400 em 2021/2022; 3400 em 2022/2023 e em 2023/2024 serão cerca de 5 mil.

Números que vão aumentando a cada ano e até 2030 serão precisos 34mil e quinhentos professores. Em 10 anos cerca de 70% dos atuais professores já se reformaram enquanto que os novos professores rondam os mil por ano, muito aquém das necessidades.

Num total de 150 mil e 600 profissionais desde o pré-escolar ao secundário, as proporções do problema são incontornáveis, pois não existe reposição pela fraca adesão dos jovens à profissão docente, entre outras razões, pelo facto de serem eles quem melhor testemunha a vida dos seus próprios professores.

Face ao panorama verificado, não é de estranhar que milhares de alunos comecem a ficar sem aulas e que só agora alguém tenha finalmente acordado. O problema é que travar este comboio em marcha acelerada, não se faz com remendos.

Milhares de alunos sem aulas fizeram finalmente soar as campainhas

De acordo com os dados do próprio MECI, o presente ano letivo começou com quase 224 mil alunos sem aulas a pelo menos uma disciplina, ou seja, 18680 turmas. Em maio eram ainda cerca de 22 mil de 1126 turmas.

Um dos remendos encontrados foi a contratação de professores sem formação, que ascenderam aos 3900, bem como o recurso a horas extraordinárias, que vieram mitigando a situação e mascarando o problema, chegando ao final do ano com este número de 939 alunos de 47 turmas.

As regiões de Vale do Tejo, Alentejo e Algarve são as mais afetadas, pela existência de mais formação a Norte e pelo custo de vida e de habitação nestas zonas.

O grupo disciplinar de informática é onde faltam mais docentes, no entanto Português, Matemática e Geografia, estão logo a seguir, com a Educação Pré-escolar e Físico-química em 5º e 6º respetivamente. As disciplinas consideradas críticas são já 15, integrando Biologia, História, Inglês e Educação Especial.

Não há professores porque se deixou degradar a carreira e as condições de trabalho. Quando os docentes lutaram nas ruas alertando para a necessidade de melhoria da profissão como forma de garantir o futuro da Escola Pública, era precisamente disto que falavam.  

Com este panorama não adianta o Governo remendar ou mascarar os problemas que só tendem a aumentar, para depois vir dizer que nada funciona e que a solução é enterrar mais dinheiro público em alternativas privadas.

Sem um investimento sério na Escola Pública, através de medidas estruturais que a tornem atrativa, forte e qualificada, teremos mais desigualdades e assimetrias, que criarão escolas a duas velocidades, com um custo brutal para os mais desfavorecidos e para o futuro do país.

Jorge Humberto Nogueira

Professor. Mestre em Educação Especial e Inclusão.


Artigo originalmente publicado em ESQUERDA NET, em:

https://www.esquerda.net/opiniao/programa-para-mais-professores-remenda-o-presente-e-ignora-o-futuro-da-profissao/91487

Foto de fauxels:

https://www.pexels.com/pt-br/foto/homem-de-blazer-bege-segurando-computador-tablet-3184328/





quarta-feira, 19 de junho de 2024

A discriminação nas escolas previne-se com políticas de integração e recursos para a equidade

A Ministra da Administração Interna do atual Governo, em declarações sobre uma agressão a um aluno estrangeiro, apresenta como solução o aumento de policiamento. Para as escolas defende-se mais polícia, enquanto que em diversos setores da sociedade se toleram discursos, manifestações e comportamentos racistas e xenófobos, cada vez mais graves e frequentes.

Há hoje a clara perceção que estes fenómenos estão a crescer também nas escolas, da mesma forma que na sociedade, mas a falta de políticas nacionais e monitorização, não permite perceber o que está a ser feito pelo direito à igualdade.

Sabemos que as situações de violência nas escolas, têm origem nos exemplos e no ambiente social e são reflexo disso. Esperamos muito mais do Ministério de Educação Ciência e Inovação, MECI, na abordagem a estes casos, bem como na violência e criminalidade em ambiente escolar, que aumentou 9% em 2023, de acordo com a Escola Segura da PSP.

Há alguma literatura criada, nomeadamente um guia específico para escolas e há intenções publicitadas como no Plano Nacional de Combate ao Racismo e à Discriminação, criado em 2021 pelo Governo PS, mas não se avalia nem se acompanha esta situação, não se sabendo se o assunto está ou não a ser abordado e se há ações concretas, ou se tudo não passa de sugestões de ação, que passam ao lado da vida diária de muitas escolas portuguesas.

De acordo com o Relatório Eurydice da UE de 2023 sobre “Promover a diversidade e a inclusão nas Escolas da Europa”, não há dados de monitorização disponíveis, referentes a Portugal, sobre os motivos que dão origem a casos de discriminação nas escolas, ao contrário do que acontece noutros países da Europa. Já em 2020 o Conselho Nacional de Educação CNE, num parecer sobre “Cidadania e Educação Antirracista”, recomenda a monitorização e a recolha de dados, como forma de desenvolver políticas públicas informadas.

Sem uma política nacional, fica ao critério das escolas e de cada professor o que fazer e que projetos desenvolver, ou que matérias abordar, por exemplo na disciplina de Cidadania, cuja avaliação da sua aplicação é pertinente, mas tarda.

O Sistema Educativo tem de se mobilizar de forma integrada

Estas situações devem ser abordadas no sistema educativo com foco na prevenção, dotando as escolas de programas, projetos, parcerias e recursos para a equidade, o acolhimento, a recuperação e o acompanhamento. São necessárias políticas nacionais, que alicercem projetos de integração e interculturalidade nas escolas, com informação e partilha, promovendo ambientes onde todos sejam ouvidos, se sintam valorizados e representados como parte de um grupo social que os acolhe como iguais.

Não está em causa a necessária articulação com as forças de segurança e de termos escolas em espaços seguros, agindo sobre qualquer forma de violência, mas necessitamos de ações abrangentes de prevenção e combate à discriminação e às desigualdades, nomeadamente implementando ferramentas de apoio às escolas para intervir de forma eficaz em situações de desvantagens e de dificuldades, como projetos de acolhimento e inclusão, onde existam equipas multidisciplinares, crédito horário de professores com formação, saúde escolar, assistentes socias e mediadores interculturais, entre outros.

Os novos alunos estrangeiros devem ser acompanhados e devidamente acolhidos, tendo onde se dirigir para resolver problemas, como a burocracia administrativa, a língua, a cultura, a documentação ou a ligação à família. Cada aluno necessita de uma resposta adequada que promova a integração, através de mecanismos holísticos de equidade e não apenas da aprendizagem da língua.

O ensino do Português Língua Não Materna, PLNM, é fundamental, mas inserido nas trocas culturais, que valorizem e integrem alunos estrangeiros e não pode depender do permanente “desenrasque” das escolas, ou de propostas segregadoras, que mitiguem o desejável ensino misto inclusivo, com o respetivo apoio.

O problema crónico de falta de Assistentes Operacionais resulta em espaços e recreios mal vigiados, falta de adultos perto dos alunos fora das aulas para apoio ou dissuasão de situações de violência. Por outro lado, a falta de professores para tutorias, parcerias, apoio e acompanhamento de alunos, tem reflexos visíveis nas dificuldades de aprendizagem e integração. A formação específica e a diversidade dos professores e restantes profissionais são também importantes, nomeadamente o recrutamento de docentes de origem diversa.

Devem existir também processos de monitorização com recolha de dados que permitam desenvolver respostas de prevenção e ação. Dados para se saber as razões e a dimensão do problema e das populações em risco por deficiência, orientação sexual, etnia ou diversidade cultural e religiosa.

Investir na capacidade transformadora da escola

O bem-estar emocional e o acesso à saúde em geral, nomeadamente saúde sexual, mental e outras especialidades, deve ser facilitado em articulação com o Ministério da Saúde, pois, como sabemos, o SNS tem desigualdades de acesso com os impactos conhecidos nas aprendizagens.

Por outro lado, os casos de pobreza e de risco sociofamiliar, muitas vezes ligados ao insucesso e ao comportamento dos alunos, têm de ter mecanismos de compensação económica na escola, mas também uma abordagem estrutural na comunidade, através do combate à pobreza e o acolhimento eficaz dos migrantes, porque uma escola não consegue ser fator de transformação se os alunos não tiverem uma situação social de igualdade em termos económicos familiares e sociais.

Uma escola sem equidade tem um preço elevado no desempenho escolar e nas oportunidades, daí, até aos problemas de comportamento e de exclusão geradores de violência, é um pulinho. Passa a escola a ser um mero reflexo de um contexto social de discriminação e intolerância, contribuindo para a violência e colocando em causa a coesão nacional.

A par da necessidade de uma vivência democrática nas escolas e do incremento de interações positivas em cada turma, há também uma dimensão curricular de adaptação do ensino à diversidade, que não é de menor importância.

Disciplinas das Ciências Sociais, como a História e a Cidadania, a própria Educação Sexual, entre outras, deveriam ter um papel mais preponderante, não só apresentando informação pertinente e conteúdos diversos e não parciais, como também pela discussão das consequências do nosso passado até aos dias de hoje.

A questão essencial é haver recursos específicos e monitorização destes processos de mudança, que sempre foram insuficientes ao longo do tempo, nomeadamente nos casos de inclusão, onde faltam recursos para os alunos com Necessidades Específicas; nos apoios e tutorias que são mitigados por falta de horas; nos sistemas informáticos com falta de apoio técnico; nas relações entre a escola e as famílias sem técnicos sociais; na saúde mental para a qual não há clínicos; na famosa recuperação de aprendizagens e ensino de língua não materna, que se fazem à custa do esforço e da criatividade das escolas e agora, mais um desafio com a integração da multiculturalidade, sempre com respostas insuficientes.

Com o crescimento dos discursos de ódio que potenciam o preconceito e os estereótipos na nossa sociedade, aumenta a necessidade de promover uma escola que combata a discriminação e as desigualdades de forma transversal, nomeadamente o racismo e a xenofobia.

Não podemos andar de projeto em projeto, de desafio em desafio a correr atrás do prejuízo.

Em vez de somarmos soluções, aumentamos carências e problemas, sempre a contar com o “atamancar” das escolas. Pelos vistos, vamos continuar sem um combate eficaz a estes problemas, a julgar pelos sinais do Programa de Educação do Governo e pela visão policial destas questões.

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Artigo originalmente publicado em Esquerda.Net em 2 de junho de 2024

Foto de Vlada Karpovich: https://www.pexels.com/pt-br/foto/escrito-a-mao-placa-aviso-alerta-4668358/

quarta-feira, 29 de maio de 2024

Negociação do tempo de serviço dos professores: dar com uma mão e tirar com a outra

 

De acordo com as organizações sindicais, o MECI, Ministério da Educação, Ciência e Inovação, faz depender a devolução dos seis anos, seis meses e 23 dias, da revogação do chamado “acelerador de carreira” legislado pelo anterior governo, o decreto-lei nº74/2023, que não tem nada a ver com o tempo congelado, mas sim com o tempo de espera de vagas para os 5º e 7º escalões, que a maioria dos docentes sofreu a par do congelamento.

A proposta feita pelo atual Ministro aos sindicatos no primeiro encontro negocial, quer dar com uma mão e tirar com a outra, pondo em questão se há uma genuína vontade de respeitar as promessas eleitorais.

Não é leal misturar um outro assunto, apenas para penalizar os professores, pondo na mesa negocial este tipo de matérias, para depois se negociar o que, à partida, nunca deveria estar em discussão.

Para além disso, estender a devolução por cinco prestações de 20% até 2028, conforme proposto pelo ME, irá ser já bastante penalizador para os docentes nos últimos patamares, dado que se irão reformar ou atingir, entretanto, o último escalão sem receber parte ou mesmo a totalidade da reposição. Sem esquecer que muitos se vão reformando sem atingir o topo da carreira.

Deveria ser prevista a devolução para efeitos de cálculo de reforma, como forma de minimizar as injustiças, mas essa não é a proposta do MECI que, de acordo com os sindicatos, apenas aplica a devolução aos professores em exercício. Muitos professores nunca irão reaver este tempo e isso diminui a sua reforma, deixando-os em desvantagem em comparação com os restantes. É preciso referir que se irão reformar em 2024 cerca de 5 mil professores e em 2023 foram 3.500, mais de 50% do que no ano anterior de 2022. Tendência que se vai agravar de ano para ano, já que 55% dos professores tem mais de 50 anos de idade e destes, 22% tem mais de 60 anos. Ainda de acordo com o mesmo relatório da OCDE, em 2022 só 16% estavam no último escalão.

Não se pense que o tempo congelado é o único problema na carreira docente, pois a este acresce o tempo real perdido entre transições de carreira e ultrapassagens de quem vinculou após 2011 e foi reposicionado. Para alem disso há docentes que já usaram o tempo entretanto recuperado para sair dos travões do 5º e 7º escalões. São aspetos porventura difíceis de entender para quem está de fora, mas muito injustos para quem viu a sua carreira penalizada em diversas situações. Por isso, para além da recuperação do tempo de serviço, a única forma de reparar as injustiças criadas pelos remendos feitos ao longo do tempo, seria reposicionar todos os docentes no seu devido escalão de acordo com o seu real tempo de serviço. Parece simples, mas demonstra que os problemas dos professores são mais estruturais e o descontentamento e desânimo têm raízes profundas, que um mero regatear ministerial ofende.

A carreira docente já é suficientemente penalizadora para assistirmos a todos estes truques negociais, atingindo pessoas que deram a vida pela Educação. Com um brutal congelamento por devolver; com anos e anos de travão em dois dos 10 escalões da carreira, onde só passam 25% dos professores e com os anos de estagnação como contratados, que pode ir aos 15 anos no início da carreira; os professores portugueses são dos europeus que mais têm de trabalhar para chegar ao topo da carreira segundo o relatório da OCDE "Education at a Glance 2022".

Se a devolução faseada tivesse começado em 2019 conforme proposta chumbada no Parlamento, o assunto estava resolvido, mas é bom recordar que PS, PSD e CDS juntaram-se para o impedir, isto depois da direita ter votado favoravelmente na especialidade, o que permitiria a aprovação. Assistimos agora a este triste jogo com o tempo, para deixar cada vez mais pessoas de fora, depois de uma campanha eleitoral com tantas promessas.

Não podemos esquecer que o problema central das escolas portuguesas, a falta de professores, se irá agravar pela idade dos quadros e pela dificuldade de renovação. Sem uma carreira digna não se atraem novos jovens, sendo imperioso discutir a melhoria das condições profissionais e de trabalho, que possam melhorar a Escola.

Em vez de estarmos a negociar uma verdadeira reparação de injustiças, bem como medidas que possam tornar a carreira mais digna e atrativa para o futuro, temos o Governo a pressionar um caminho de mitigação de um roubo feito à classe docente portuguesa, fingindo que negoceia e que dá alguma coisa, quando na prática joga com o passar do tempo e tenta fazer descontos em compensações anteriormente legisladas noutra matéria.

Este início de “negociação”, acompanhado com o discurso da “tanga” do próprio Governo, faz-nos recordar outros tempos de governação e deixa-nos imensamente pessimistas em relação ao processo negocial em curso e à efetivação de medidas estruturais numa carreira que atraia profissionais e no investimento que qualifique a Escola Pública.

Foto de Katerina Holmes:

https://www.pexels.com/pt-br/foto/mesa-escolar-com-cadernos-em-sala-de-aula-moderna-5905435/


segunda-feira, 8 de janeiro de 2024

Horários da Educação Especial não podem pôr em causa o apoio aos alunos com dificuldades acentuadas.

Nos artigos 8º a 12º, do decreto-Lei n.º 54 de 2018, a intervenção direta dos docentes de educação especial, DEE, é mobilizada para alunos com necessidade de Educação Especial e Medidas Adicionais, que terá 22 horas letivas, quer seja em turma, em grupos de nível, unidade especializada, ou outros contextos educacionais e sociais.

Com o desafio de uma presença mais efetiva dos alunos com dificuldades acentuadas em turma e em contextos sociais ricos e inclusivos, há necessidade de mais tempo de acompanhamento direto de profissionais.

Na componente não letiva, a lei atribui-lhes responsabilidades na avaliação especializada dos alunos sinalizados, fazendo parte da equipa variável da EMAEI, onde articulam com os restantes intervenientes, técnicos, docentes, instituições, entre outros, bem como na elaboração dos RTP, PEI e PIT, e acompanhamento da implementação das respetivas medidas.

É necessário ainda ter em conta que, tendo os DEE direito a redução da componente letiva, muitos Agrupamentos estão a completar a componente não letiva com apoios, o que resulta na prática, no preenchimento das mesmas 22 horas com alunos.

Não nos podemos esquecer que o trabalho direto com alunos, exige preparação e planificação, à semelhança dos restantes professores, sendo necessária uma carga horária correspondente na CNL, no âmbito das 35 horas totais.

A isto acresce o baixo número de DEE em cada Agrupamento, o elevado número de alunos na componente letiva e não letiva e toda a sobrecarga que isso acarreta. Somam-se muitas situações de itinerância entre estabelecimentos devido à dispersão geográfica e o número de escolas em muitos locais. Não havendo equipas multidisciplinares, psicólogos e assistentes operacionais para uma intervenção de equipa, o trabalho dos DEE torna-se ainda mais isolado e difícil, com consequências na qualidade do apoio específico.

De acordo com investigação, a especialidade das funções, tem uma componente colaborativa forte, bem como acarreta a necessidade de acumular experiência em conjunto com os colegas ao longo do tempo. O isolamento é um entrave à troca de experiências e desenvolvimento profissional e a inexistências de equipas técnicas reflete-se também negativamente no apoio adequado que o próprio docente necessita.

Todos os professores são professores de inclusão

Mas, para além do referido anteriormente, as funções atribuídas ao DEE contêm uma outra componente mais ampla, que envolve o apoio à aprendizagem e à inclusão, no acompanhamento mais geral de cooperação e articulação com órgãos, docentes, equipas multidisciplinares e serviços da comunidade, “enquanto dinamizador, articulador e especialista em diferenciação dos meios e materiais de aprendizagem e de avaliação”.

Esta dimensão é apresentada no preâmbulo da lei como um “reforço” da intervenção dos DEE. Isto resulta na exigência de que, para além das 22 horas de trabalho direto com alunos e da CNL correspondente, estes professores tenham de colaborar com as estruturas escolares em processos de inclusão e estratégias de diferenciação, para a generalidade dos alunos, concretamente os que beneficiam de medidas seletivas e universais. Resta saber quando, como e onde, poderá o professor desenvolver a tal componente mais ampla de promotor da inclusão.

Este tipo de atribuições não podem ser exclusivas do DEE, pois todos os professores são professores de inclusão e todos devem ter momentos de articulação e reflexão para esse desígnio, sem que isso tenha consequências no tempo disponível para apoiar diretamente os casos que necessitam.

Não é adequado dispersar as funções a tal ponto, que se possa perder o foco do essencial sob pena de colocar em causa a qualidade do trabalho destes professores. É necessário ter em conta, os desafios da profissão, já de si complexos e exigentes dada a diversidade das necessidades dos alunos com intervenções intensivas, a falta de recursos adequados, a formação específica diversa e o excesso de documentação e burocracia.

Por tudo isto, a gestão da componente letiva e não letiva tem de ser realista e suficientemente flexível para o que se pretende. Um conjunto tão vasto de funções, não pode assentar numa sobrecarga de trabalho e de horas, que facilmente excedem o limite, ou que tenha custos na resposta específica a alunos, sob o pretexto de que agora os DEE são para uma ideia generalista de inclusão.

A desejada flexibilidade de horário deve ter em conta as diferentes realidades dos Agrupamentos, definindo o que se pretende de cada DEE e quanto tempo é necessário para as suas atribuições, dentro de um desígnio tão exigente e ambicioso, sem perder de vista a intervenção direta nos casos de alunos com necessidades específicas graves, acompanhando seus professores e pais.

Reforçar e ampliar as competências por via da lei, não pode colocar em causa o cumprimento dos horários laborais e deve ter um correspondente reforço de recursos, nomeadamente o aumento do número destes profissionais em cada escola e a existência de recursos e equipas, de acordo com as necessidades reais.

Artigo Publicado na Revista do SPGL, Escola Informação, dezembro 2023.


Foto de Julia M Cameron: https://www.pexels.com/pt-br/foto/teclado-apple-comunicacao-conversa-divulgacao-4144923/




segunda-feira, 11 de dezembro de 2023

Ministério da Educação na despedida: desencanto docente, falhanço negocial e soluções adiadas.

Este Governo despede-se deixando todos os problemas da Educação Pública por resolver, após o falhanço negocial para valorizar a carreira e as condições de trabalho dos professores. Focou-se no ataque ao direito à greve e deixa como herança uma carreira destroçada, uma classe desiludida e desmotivada, bem como largas dezenas de milhares de alunos sem aulas. Para responder à crescente falta de professores tem para apresentar a possibilidade de se poder dar aulas sem habilitação para a docência. A batata quente passa para o senhor que se segue, resta-nos assistir ao patético desfile de promessas eleitorais daqueles que, no passado, sempre se juntaram para negar justiça aos docentes.


Foi promulgado neste final de novembro de 2023 o Decreto-Lei n.º 112/2023 de 29 de novembro, que altera o regime jurídico da habilitação para a docência no pré-escolar, básico e secundário, abrindo a possibilidade de se dar aulas sem profissionalização, ou seja, sem se ser professor. Este recurso a habilitações próprias, estagiários e a jovens sem licenciatura completa, para além de anacrónico, visa facilitar o acesso, mas, na realidade, corresponde a um retrocesso, que vai colocar em risco a qualidade do ensino, bem como abrir a porta para a desvalorização da profissão, criando uma escola pública de serviços mínimos, desigual e com futuro incerto.

Tem ainda o efeito pernicioso de criar nas escolas a figura do professor orientador mais experiente, que apenas visa sobrecarregar ainda mais os professores, já desgastados e com excesso de atividades burocráticas, sem contrapartidas monetárias. Cria-se um sistema de facilitação para dar aulas, assente em jovens descartáveis e na sobrecarga de trabalho dos professores, a custo zero.

 Na mesma semana o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 22 de novembro, declarou ilegais os serviços mínimos impostos à greve às avaliações sumativas finais dos anos com provas finais ou exames do 9.º, 11.º e 12.º anos.

Esta decisão veio juntar-se a todas as outras, que também consideraram ilegais os serviços mínimos decretados em 2023, numa tentativa patética do Ministério para esvaziar a luta dos professores que se mobilizaram na rua e nas escolas a níveis extraordinários na defesa da Escola Pública. Apesar das ameaças de processos disciplinares e perseguições, no final prevaleceu a justiça e a legalidade, deixando a nu até que ponto vai um Governo para cercear a liberdade sindical e a legitimidade constitucional do protesto de uma classe.

 Estas duas notícias de final de novembro, mostram bem a marca que deixa este Ministério na Educação em Portugal. Incapaz de resolver o problema mais que anunciado da falta de professores e falhando nas negociações com todos os sindicatos, despede-se com uma medida de remendos que baixa as habilitações para a docência e deixa uma imagem de quem recorreu a todo o tipo de expedientes para denegrir e insultar os professores, em vez de focar a sua energia num acordo que pudesse melhorar as condições nas escolas e preparar um futuro melhor na Educação.

 Não se captam professores sem uma carreira justa e atrativa

 Em outubro eram já mais de 1200 as pessoas a dar aulas sem habilitação, mas o número tende a aumentar à medida que o ano letivo avança com as substituições e as reformas, sem que haja professores habilitados disponíveis. Este ano de 2023 reformaram-se já 3.521 professores, um aumento de quase 50% em relação ao ano passado, prevendo-se que até 2030 se aposentem mais de metade, num universo total de 150 mil docentes.

 O ano letivo começou com largas dezenas de milhar de alunos sem aulas devido à falta de professores e não devido a greves, como se tentou fazer crer ao longo de 2023.

O falhanço das negociações, não é uma fatalidade, representa sim a recusa em investir na escola pública e, com isso, criar as bases para um sistema dual, que alimenta o ensino privado.

 Um professor leva em média 15 anos como contratado. Mais tarde, é bloqueado em dois, dos dez escalões, onde apenas 25% progride e os restantes esperam vários anos pela sua vez.  Se a isto somarmos os mais de seis anos de congelamento, temos uma carreira que não avança, onde o salário está muito abaixo dos anos efetivamente trabalhados e consequentemente, uma reforma a meio da tabela, que nem paga a mensalidade de um lar.

 Houve também um ataque mais vasto à classe, colocando em dúvida a sua idoneidade, difamando os seus profissionais, precarizando-os, desvalorizando a carreira, atacando-os na sua luta, atafulhando-os de trabalho inútil e penalizando-os, como no caso da mobilidade por doença, que deixou vulneráveis milhares de docentes com doenças graves ou pessoas a cargo.

 Esta degradação das condições de trabalho não é compatível com a necessidade de atrair novos profissionais e qualificar o ensino. Sem uma carreira justa, não há novos professores e não se fixam os que estão, nem tão pouco se incentiva o regresso dos milhares que já abandoaram.

Gestão economicista dos recursos humanos, mascarada de inevitabilidade.

Tenta-se fazer crer que a falta de professores é uma inevitabilidade em todos os países, mas não é o que se verifica quando olhamos o percurso de decisões desastrosas na gestão da educação em Portugal.

 Desde há 15 anos difundiu-se a conveniente ideia, que haveria excesso de professores, centrando a gestão da educação em critérios economicistas. Aumentaram os alunos por turma, diminuíram os professores, degradou-se a carreira e os salários, dificultou-se o acesso aos quadros, incentivando a precariedade da chamada “casa às costas”.

 Em 2022 existiam 33 mil professores precários, mais de 20% do total. Números completamente inaceitáveis num sistema público onde o próprio Estado promove a precariedade e os baixos salários. Cada professor ganhava em 2022, em média, menos 6%, que há quinze anos atrás e passou a ter uma carreira contributiva com mais 5 a 10 anos, devido ao aumento da idade de reforma, a par da injustiça do fator de sustentabilidade.

 Tudo isto resultou num abandono precoce da profissão de pelo menos mais de 10 mil profissionais na última década, devido a desgaste, precariedade e desilusão. Profissionais que nunca mais regressaram a um sistema com crescente falta de professores, onde os alunos aumentaram e não foi acautelada a formação em número suficiente para as previsíveis saídas.

Para além do falhanço na gestão dos recursos no serviço público, este Ministro deixa a classe mais envelhecida da União Europeia completamente desmotivada, desiludida, com sinais claros de exaustão, sem perspetivas de carreira e com ordenados abaixo do que seria justo.

Eleitoralismo dos que nunca estiveram do lado da solução

Ficam adiadas as soluções para um próximo Governo, que vão muito além da devolução do tempo de serviço, agora acenado como promessa eleitoral daqueles que no passado nunca estiveram do lado da solução para os problemas difíceis que a Escola Pública enfrenta.

Um dos candidatos à liderança do PS e ex ministro Pedro Nuno Santos, acaba de admitir publicamente que afinal é a carreira dos professores que está em desvantagem em relação à restante função pública, onde já ocorreu recuperação do tempo congelado e não o contrário como foi amplamente propagado. Foi preciso haver eleições para se admitir publicamente o que sempre foi óbvio, deitando por terra a falácia de que dar justiça aos professores iria criar desigualdades nas restantes carreiras. Foi o vale tudo, mas os professores têm memória.

Não esquecemos que em 2011 Passos Coelho mandou os professores emigrar e disse, em 2013, que havia professores a mais, sendo secundado por Nuno Crato (2012) e Rui Rio em 2019. Também Tiago Brandão Rodrigues negou sempre a falta de docentes. Em maio de 2019 PSD e CDS, juntaram-se ao PS para chumbar a proposta de reposição total do tempo de serviço. Sem maioria do PS, o problema tinha ficado resolvido.


Também não esquecemos que em 4 de dezembro de 2020, foram discutidos na AR três projetos de Resolução do BE, PCP e PAN, de melhoria das condições da escola pública, por iniciativa da “FENPROF”, onde, para além da recuperação do tempo de serviço se propunha o combate à precariedade e criação de um regime de concursos justo; a eliminação da barreira no acesso aos 5.º e 7.º escalões; o rejuvenescimento da classe docente e um regime específico de aposentação; bem como o cumprimento das 35 horas semanais com a clarificação da componente letiva e não letiva. Todos os projetos foram chumbados por PS, PSD e CDS-PP e nessa altura também não havia maioria absoluta do PS. Por estes exemplos, sabemos quem sempre se juntou para negar justiça aos docentes.

Chegados aqui, com eleições marcadas, nada mudou na carreira dos professores, que mantem todos os estrangulamentos, ultrapassagens e injustiças, a par das más condições de trabalho e perda de rendimentos. Não se investiu na qualificação do ensino público, não se salvaguardaram as condições de trabalho, não se promoveu o respeito pelos docentes, nem o diálogo social, pedras basilares da qualificação do sistema.

Em Portugal ficou tudo por fazer, cabendo agora ao país decidir se mantemos uma gestão lesiva da escola pública, cada vez mais fragilizada e em risco de se tornar num serviço mínimo reprodutor de desigualdades e injustiça social.


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